A brilhante definição de Rubem Fonseca para os sonhos, que acabou servindo de título para uma de suas grandes obras, é que as evoluções oníricas nada mais são do que grandes emoções aliadas a pensamentos às vezes ilógicos. Não há qualquer coerência nos sonhos bons ou ruins que povoam nossas noites, mas não há como negar que não passaremos incólumes por eles.
No dia seguinte a um sonho, a gente se lembra de um enredo totalmente desconexo, que se passa num lugar improvável, com personagens imponderáveis, e um final absurdo. Não concorreria a nenhuma categoria do Oscar se fosse um filme, mas certamente terá mexido com nosso inconsciente, mais pelos efeitos especiais do que pela lógica, mais por desencavar uma história antiga de que nem nos lembrávamos mais do que adequar essa história a uma realidade atual.
Tenho sonhos recorrentes com a profissão. É muito comum transformar-me nesses sonhos novamente em repórter, quase sempre na Folha de S. Paulo, mas em redações que nunca vi, respondendo a chefes que não conheci. As histórias em que me envolvo como repórter são aqueles tais que Rubem Fonseca classificou como pensamentos imperfeitos.
Para ter uma ideia, outro dia sonhei que o ex-prefeito de Florianópolis Cesar Souza Junior tinha sido assassinado pela máfia dos passaportes falsos, ele mesmo um dos envolvidos nas falsificações. Quem mandou que o repórter Ricardo Kotscho apurasse com cuidado e discrição o crime foi Otávio Frias de Oliveira, o falecido Publisher da Folha, que na história vinha a ser o pai do ex-prefeito…
Dá para avaliar o grau de alucinação do roteirista? Mas acabou que eu acordei e não fiquei sabendo de mais detalhes para contar aos estimados leitores.
Se os enredos são mirabolantes no mais das vezes, em alguns casos eles nos surpreendem, porém. Sonhei recentemente com o fim do mundo. Foi um sonho muito longo que, pelo menos, manteve uma certa sequência lógica. Começou com a informação de que o mundo iria acabar e que morreríamos todos, embora não se soubesse de que forma ocorreria o desenlace.
Minha preocupação era com a possível agonia da morte. Será que o mundo ia acabar em fogo? Em terremoto? Em inundação? Será que sofreríamos as dores de uma morte violenta? E o que aconteceria depois?
Felizmente – nos sonhos, pasmem!, as coisas às vezes são mais organizadas que na vida real – havia sido criado um setor que nos ajudaria nessa anunciada travessia, para evitar nosso sofrimento. Nesse setor, um grande grupo – eu e minha família no meio dele – fomos colocados diante de um enorme painel retangular, com figuras muito coloridas. Em determinado momento, um celebrante postou-se diante dos ícones e começou a executar uma espécie de dança com os braços, agitando-os de um lado para o outro. De repente, apaguei.
Foi como se desse um rápido cochilo e acordasse. Só que acordei em outro lugar. E sozinho. Do grande grupo, sequer minha família tinha ficado perto de mim. Não sabia onde estava e não conhecia ninguém. Pensei se aquilo era a morte ou se havia sido transportado para outro planeta. Avaliei se ali poderia ser o lugar onde ficavam as almas, mas não me pareceu com nenhum ‘nosso lar’ ou nenhum paraíso como nos havia sido pintado nas aulas de catecismo; no máximo, ali poderia ser o purgatório. As ruas eram asfaltadas, havia carros, havia poluição, havia shopping center com elevador panorâmico. Só não havia pessoas conhecidas.
Percorri as ruas quase desertas pelos quatro lados do ponto onde acordei, à procura de minha família. Lembro-me de que sentia uma angústia muito grande por não ter minha mulher e minhas filhas comigo, e me perguntava se estava sendo punido por alguma coisa ao ser abandonado sozinho no planeta/nosso lar/purgatório.
Nessa minha jornada, acabei descobrindo uma espécie de central de recepção ao pessoal que havia chegado ali como eu, e nessa central encontrei uma ‘cadastradora’ que tinha trabalhado comigo havia algum tempo (embora não me lembre efetivamente de ninguém como ela) e me foi ensinado que, para reaver minha família, eu teria de andar pelas ruas pensando com muita força em tê-las de volta, exprimindo com muito sentimento como as queria comigo. Força do pensamento positivo ou de alguma oração profana. Talvez – e isso não foi a ‘amiga’ quem disse, mas eu inferi dentro de meu agnosticismo renitente – uma entidade superior que tomava conta de lá poderia apiedar-se de mim e brindar-me com a presença delas.
A última coisa de que me lembro, no sonho, foi estar engatinhando por uma daquelas ruas asfaltadas e fumacentas, os olhos cheios de lágrimas, pedindo: “eu preciso de vocês, cadê vocês, amo vocês, venham ficar comigo…”
Sei que a história é meio besta, mas, se bem trabalhada, dá para fazer um filmezinho legal.