Dois trechos de lembranças marcam em mim o dia 31 de agosto de 1994: o primeiro termina com minha presença na agência central dos Correios de Cuiabá, onde tinha ido conferir a chegada (ou não) de um vale postal; o segundo começa com meu despertar numa cama do pronto-socorro de Várzea Grande, vizinha da capital mato-grossense, com muita sede e o braço direito repousado numa canaleta de gesso e envolto em quilômetros de bandagens.
Entre os dois fragmentos, um vazio enorme, um zero de recordações.
Fiquei sabendo por relatos que estava no pronto-socorro porque havia sido atropelado. No dia seguinte, até o jornal O Estado de Mato Grosso deu uma nota, ressaltando que a vítima de atropelamento estava embriagada na hora do acidente.
Tive fratura exposta do úmero direito. Fiquei sabendo alguns meses mais tarde – porque o atendimento em Várzea Grande sequer verificou isso – que tinha sofrido também traumatismo crânio-encefálico, com hematoma subdural. Só descobriram o TCE, e isso em Blumenau, quando o cérebro deu uns solavancos sem maiores consequências.
Sobre como cheguei ao local do acidente – avenida da FEB, próximo ao posto Marco Zero, segundo a nota do jornal – sobre as circunstâncias do atropelamento, sobre quem me atropelou, sobre como fui socorrido… nada! Quando acordei no pronto-socorro, sem saber onde estava e com muita sede, procurei uma porta e acabei saindo numa sala de espera. Ali, parece que que tinha um japonês, sentado, que me interpelou: “Assim, você me ferra!”
Eu disse ‘parece’ porque, na verdade, não sei se o japonês era real ou se essa foi uma lembrança criada pela confusão mental em que me encontrava.
Nesses quase trinta anos, sempre acreditei que a falta de lembranças sobre o atropelamento era culpa de minha embriaguez. Amnésia alcoólica não me era uma condição desconhecida, afinal. Já havia passado por isso, embora nunca numa situação traumática. Mas, recentemente, li que o próprio traumatismo craniano pode ter apagado possíveis recordações.
Exemplo dessa possibilidade é que, quando o hematoma subdural se manifestou, passei vinte e três dias internado no Hospital Santo Antônio, em Blumenau, mas só me lembro claramente dos últimos seis dias, depois de o coágulo ter sido drenado. Os outros dezessete dias são recheados de fragmentos dispersos de memória. Sabe-se lá quanto não foi apagado de minhas lembranças.
Embora não me absolva, a mim e ao meu alcoolismo felizmente pretérito, a hipótese de a amnésia ter sido culpa do trauma torna meu passado um pouco mais leve. O alcoolismo sempre traz consigo uma coleção de culpas. Essa seria apenas uma a menos.