Meu inglês é oquei, não sou exatamente fluente, mas ele nunca me deixou na mão. Meu francês dá para o gasto. Depois de quatro anos de Aliança Francesa e algumas viagens à França, já foi bem melhor. O espanhol, bem, nunca foi lá essas coisas, mas para qualquer emergência, temos à mão o bom e velho portunhol.
A verdade é que o sonho de ser fluente em várias línguas nunca foi adiante. A exemplo de muitos de nós, deve ser alguma trava desde a infância. E sempre que digo isso, lembro do “Galinha Tonta”, um dos personagens mais curiosos e intrigantes que conheci em meus quase 50 anos de jornalismo.
Nesses anos todos, como repórter, redator ou editor, estive frente a frente com personagens fascinantes, destaques no mundo dos esportes, da moda, política, literatura ou ciência. Outras, mitômanos, estelionatários, ladrões, assassinos, serial killers, evidentemente, pouco acrescentaram.
Diferentemente dos demais, o “Galinha Tonta”, alcunha do mineiro Edvalson Bispo dos Santos, ainda me intriga. Morador das barrancas do rio São Francisco, na cidade do mesmo nome, ele se tornou conhecido em todo o Brasil e até no exterior, no final do século passado, por escrever e falar fluentemente japonês, alemão e inglês. Detalhe: era semianalfabeto, e mal falava o português.
A alcunha “Galinha Tonta” lhe foi dada ainda na infância, porque andava em círculos, parecia meio abilolado. O pai se foi, como sempre ocorre, e a mãe, com uma penca de filhos pequenos, mal conseguia sustentar a casa com o pouco que ganhava como doméstica. Enquanto trabalhava, os meninos perambulavam pela cidade atrás de algum biscate ou de uma alma bondosa que lhes oferecesse ao menos um prato de comida.
Certo dia, Edvalson, à época com sete anos, bateu na porta de uma das famílias mais abastadas da cidade. Condoída, a empregada lhe deu de comer, mas o aconselhou a se instalar na varanda, longe dos olhos da patroa. Ao chegar da rua, no entanto, incomodada com a visita, a dona da casa pega o prato e joga no quintal, dizendo que ele deveria era comer com os cachorros.
Em casa, chorando, o menino relata à mãe o sucedido; é consolado por ela, mas vai dormir com a barriga roncando. À noite, sonha. A sós, na praia, provavelmente do rio São Francisco, que passava ali perto, encontra um menino japonês, um inglês e um alemão, todos da mesma idade que ele. Hiroshi, Hanz e Paul o cumprimentam e conversam com ele em seus respectivos idiomas. Ele os entende perfeitamente.
Ao acordar de manhã, Edvalson conta à mãe o sonho, ao mesmo tempo em que repete os diálogos da noite anterior. Só pode estar possuído pelo demônio, ela imagina. Pega-o pela mão e o leva até o padre da paróquia, coincidentemente, de origem alemã. Depois de conversar com o menino em sua língua mãe, o religioso acalma a mulher. Nada de possessão demoníaca, apenas “um dom que ele recebera do Espírito Santo”.
Mas não parou por aí. Os sonhos de “Galinha Tonta” se repetiram todas as noites até ele completar 21 anos. Quanto mais sonhava com seus amigos, mais se especializava nos três idiomas. Sem dinheiro sequer para comprar um caderno e um lápis, usava carvão para escrever as frases ouvidas na parede de sua casa. E solidário, repassava os conhecimentos adquiridos, principalmente os de inglês, à criançada da vizinhança.
No final dos anos 1990, informado sobre o fenômeno, mandei a São Francisco o repórter Mário de Andrade, já falecido. Assim, a Revista Kalunga, que eu editava, foi um dos primeiros veículos do Sudeste a entrevistar Edvalson. Mais tarde, ele recebeu a visita do Maurício Kubrusly, pelo Fantástico; esteve no Jô Soares; no programa do Ratinho, até se tornar uma celebridade em âmbito nacional e internacional.
O mais curioso é que Edvalson nunca fugiu do roteiro em todas as entrevistas: o dos três garotos – japonês, alemão e inglês –, que o visitaram em sonhos, aos sete anos, sonhos esses que se tornaram recorrentes por mais 15 anos. Incomodadas, algumas pessoas chegaram a sugerir que ele criasse uma outra versão para o seu aprendizado, mas ele sustenta a original até hoje. A mesma que me contou, quando visitou a nossa redação, em uma de suas muitas viagens a São Paulo.
À época, cheguei a conversar com psicólogos e psiquiatras sobre o caso, mas ninguém foi conclusivo a respeito. “Ah, ele nasceu com o dom para aprender idiomas”, arriscou um deles. Isso é notório. Só para constar, quando versava em várias línguas, ele era ainda semianalfabeto e só veio a tirar seu diploma do primário quando adulto. Se enveredarmos pelo lado espiritual, muitos vão falar, realmente, em dom do Espírito Santos, vidas passadas ou reencarnações, mas aí é uma questão de fé.
Atrás do fenômeno Edvalson, chegou a São Francisco até uma delegação de japoneses. Submeteram-no a uma série de perguntas, que ele respondeu com desenvoltura. Ao final, salvo, uma ou outra falha, dadas as circunstâncias, concluíram que o seu conhecimento do idioma é excelente. À mesma conclusão chegou um grupo de norte-americanos, que conversou com ele em inglês.
Edvalson ou “Galinha Tonta” hoje com 53 anos, poderia estar ainda usufruindo da fama que granjeou (desculpem), inclusive, ganhando muito dinheiro, mas optou pelo ostracismo. Antes, tentou a política, mas não foi bem-sucedido. Hoje, convertido à Congregação Cristã do Brasil, mora na mesma casinha humilde, às margens do São Francisco.
Mesmo com parcos recursos, mantém uma entidade para ajudar os mais necessitados e o sonho sempre presente de construir uma escola para crianças pobres da região. Eis aí um sujeito com quem eu gostaria de voltar a conversar para entender melhor sua experiência e história. Confesso que não lhe dei a atenção devida quando conversamos, provavelmente, pelo acúmulo de trabalho.
A propósito, entre as muitas propostas de cursos e métodos de aprendizagem de línguas que recebo, diariamente, me interessa muito o mandarim. É muito complicado, mais fácil seria Edvalson me ensinar a técnica de aprender em sonhos…
Manoel Dorneles

Pensei que, em algum momento do texto, ele fosse encontrar um jeito de se vingar da mulher que o mandou comer com os cachorros!