Pense num cara azarado. Otacílio dá de dez nele. Começa pelo nome. “Onde é que meu pai, o velho Otacilião, estava com a cabeça?”, “Pra que repetir a história?”, cismava o coitado todas as vezes em que alguém, na hora do almoço, gritava “Ota” a plenos pulmões, no calçadão da avenida Paulista. Hora do almoço, claro, todo mundo para pra olhar e o infeliz não sabe onde enfiar a cara. “Cilinho” também não gosta muito, mas tolera. É assim que o pessoal de casa o chama. Nem se lembra de quantas vezes, quando criança, pensou “quando for grande vou ao cartório e mudo de nome”.
O tempo passou, ele cresceu e acabou deixando pra lá. Sabe que não é nenhum gênio, mas também não é burro, só azarado. Sonhou uma vez que tinha sido atropelado por um carro funerário, vejam só. Nunca foi, mas uma vez, durante o enterro de um amigo, foi abalroado pelo carrinho do coveiro. Na escola (pública, é claro), tinha que estudar muito, ainda assim, passava de ano raspando. Sabia que se não estudasse, lhe sobravam poucas opções na “perifa” paulistana (e nunca eram das melhores). Mas orgulha-se de dizer que nunca levou bomba. E, também, não levou nenhum enquadro da polícia.
Vagas lembranças de uma infância distante. Mal começa a falar, tenta dar os primeiros passos, sozinho mesmo, ninguém na casa parecia interessado em cuidar dele. Vira e mexe, tropeçava no tapete ou no batente da porta. Nessas horas, todo mundo ria, achavam seus tombos engraçadinhos, menos ele, que saia todo ralado. Eram tão frequentes, que achavam que fosse de propósito. Maiorzinho, brinca com os moleques da rua. Adivinha quem sempre chega em casa todo esfolado?
Otacílio nunca se esquece do cipó sobre o córrego. Naquele tempo tinha isso nos arredores de São Paulo. Era a brincadeira predileta da meninada. Fazia uns 50 anos que o cipó estava lá, pendurado na mesma árvore, onde todos os dias, pelo menos uns 20 moleques se lançavam de uma margem a outra. Sabor de infância, a sensação de liberdade que o efêmero voo proporciona, um bung jump caboclo.
Ele nunca quis ir, tem medo, medo de altura, do vazio. Insistem tanto que ele um dia topa, e se agarra ao cipó para a travessia, que se promete prazerosa. E não é que o cipó cisma de arrebentar justo com ele, bem no meio da travessia? Estatela-se no fundo do riacho, sorte que caiu de bunda. Não machucou nada, mas rasgou as calças e se lambuzou no barro fedido. Definitivamente, não foi o peso dele; ele nem era o mais gordo da turma, só o mais azarado. Nem precisa dizer que levou a maior surra da mãe ao chegar em casa. Coitado.
Não foi essa a primeira e nem a única vez em que apanhou. Com a tal da nuvenzinha sobre sua cabeça, muitas outras coças vieram, no colégio, na faculdade, na vida, enfim. Na sentimental, quase sempre chegava atrasado, ao apaixonar-se pela menina certa, na hora errada – ela já tinha namorado. Superou aqui, ali, esses pequenos dissabores, conquistou outras mulheres. Não eram como as dos seus sonhos, mas de um jeito ou de outro o fizeram feliz.
Nos bancos da faculdade, sonhava com o diploma. Era até um aluno aplicado, mas se dependesse da sorte, nem exames faria. Conseguia perder o último ônibus para a escola. Mais de uma vez, teve que ir a pé, coisa pouca, dez, 15 quilômetros. Graduado e empregado, com as economias da primeira promoção, compra sua primeira passagem internacional. Sempre teve vontade de conhecer os Andes e, principalmente, seus vulcões. Pois não é que às vésperas da viagem, o Calbuco entra em erupção e todos os voos para a região foram cancelados.
“Ainda bem, já pensou se eu embarco e o avião cai. Do jeito que sou azarado iam colocar a culpa em mim”, raciocina. “Comigo tudo é possível de acontecer. A que devo creditar esse cancelamento ao azar ou à sorte”, brinca. Se pensarmos bem, ele tem lá suas razões. São tênues os limites entre a sorte e o azar. “Posso ter tido o azar de não ter nascido de olhos azuis, na Escandinávia; em compensação, tenho a baita sorte de estar vivo até hoje, trinta e tantos anos, mesmo tendo vindo dos confins de São Paulo”, conclui.
Há uma certa coerência no raciocínio. Muitos de seus amigos de infância morreram ou sobrevivem por aí nos cadeiões da vida. “Na soma dos resultados, como dizia Belchior ‘presentemente, posso me considerar um sujeito de sorte’. Aliás, Otacílio Santana você é mesmo um camarada sortudo”, comemora embaixo do chuveiro. Ensaboa-se todo e, quando vai enxaguar-se, a água acaba. Com os olhos cheios de xampu, ele tateia em busca da toalha. Nada. Aos poucos abre os olhos e a vê pendurada no varal, lá no fundo do quintal, como se estivesse acenando pra ele…