Isto aconteceu uns três ou quatro meses atrás, quando o isolamento social ainda estava sendo respeitado: no mesmo dia, com diferença de poucas horas entre um e outro, três rapazes de aparência humilde bateram no meu portão oferecendo pão caseiro, que ‘a patroa’ estava fazendo ‘para ajudar a pagar as contas’.
Minha resposta para os três, por cruel que possa ter parecido, era sincera: “E quem é que não está fazendo pão em casa, hoje em dia?”
Era verdade! Quantos e quantos confinados em prisão domiciliar pela pandemia não resolveram descobrir lá nos recônditos de sua alma uma vocação culinária que não emergiria em condições normais? Quantos não meteram literalmente mãos à massa nesse período, em parte como terapia contra a clausura, em parte para se livrar da dependência das compras em supermercado.
Fazer pão é muito fácil! Requer poucos e acessíveis ingredientes, e aprender a sovar a massa é questão de meia hora de treino. As milhares de receitas estão disponíveis no Google. O Youtube e o Facebook trazem vídeos explicando detalhadamente o que fazer com as mãos enquanto farinha, ovo, sal e água cumprem seu roteiro.
Eu mesmo, que tenho a culinária como segunda atividade preferencial, fiz pão pela primeira vez durante a pandemia (a imagem que ilustra o texto é de minha última fornada). Não que a arte da cozinha estivesse obnubilada nos fundos de meu arquivo de vocações, mas porque, sei lá, deu vontade de experimentar. E devo dizer que pão foi apenas uma das muitas novidades que meu espírito gastronômico trouxe à superfície no período de quarentena – houve biscoito de polvilho, strudel, pão de queijo, trufas…
Mas minha preocupação não é, afinal, com os ‘master chefs’ que vieram à luz na escuridão da Covid.
É com o aparente fim deles.
Nunca mais alguém bateu no meu portão oferecendo pão caseiro, que ‘a patroa’ estava fazendo ‘para ajudar a pagar as contas’.
Por quê?
Pode ser a pura e simples conscientização: se todo mundo estava fazendo pão em casa, que tal partir para a produção de um bem que não esteja ao alcance da capacidade culinária de qualquer padeiro de botequim?
Pode ser também que as merrecas distribuídas no auxílio emergencial tenham ajudado a pagar as contas e desobrigaram ‘a patroa’ a somar mais uma atividade às muitas de sua vida como dona de casa…
Mas pode ser também que as merrecas distribuídas no auxílio emergencial tenham se tornado insuficientes para cobrir os custos da farinha, dos ovos, da gordura, do gás para o forno… Ou do ânimo para tentar de todas as formas livrar-se da miséria…
Confesso que pensei nisso apenas hoje, quando li no jornal que o fim do auxílio emergencial estava tirando R$ 32 bilhões mensais da população de baixa renda. E não é apenas ‘o fim do auxílio emergencial’, mas o fim do auxílio emergencial sem que qualquer alternativa tenha sido pensada para substituí-lo. Que perspectivas essa gente vai ter daqui para a frente? Fazer uma fogueirinha com os boletos, para ferver água e constituir uma sopinha rala? Sair batendo de porta em porta, oferecendo não o pão caseiro, mas a cara de fome, confiando na solidariedade cada vez mais escassa do povo brasileiro?
Empatia não enche barriga, eu sei. E algo precisa ser feito.
Mas o que esperar de um governo (?) cujo instinto genocida não se limita a menosprezar o coronavírus?