Quando o mar decide o final da história

A incrível história de dois mortos à procura de um corpo.
Parece o título de alguma novela de realismo fantástico, não parece? Mas não é. Esse é o título de uma matéria que eu fiz para o hoje extinto jornal O Estado (Florianópolis), em agosto de 1998, sobre uma das características do mar que eu até então desconhecia: o livre-arbítrio.
A gente pensa que não, mas o mar tem lá sua idiossincrasia, suas teimas, seus embirros. Não há oceanógrafo que consiga antever as respostas do oceano diante de certas situações aparentemente corriqueiras. Uma dessas situações é a decisão do destino que vai dar aos corpos dos afogados. Em alguns casos, o mar os toma para si e transforma o silêncio de suas profundezas num túmulo inviolável e inacessível. Em outros, ele os devolve rapidamente e, às vezes, aos pedaços.
A propósito disso, um resumo do caso com que abro o texto pode explicar o sentido do que estou querendo dizer:
Naquela época, um tronco humano – e quando digo tronco refiro-me apenas ao torso, sem braços, pernas etc. – foi localizado boiando ao largo da praia dos Ingleses, no Norte da Ilha, e imediatamente familiares de duas pessoas que haviam desaparecido no mar pouco tempo antes foram tentar sua identificação.
Um dos mortos era um pescador de Laguna, alguns quilômetros ao sul, tragado pelo oceano 12 dias antes; o outro, um desses pescadores de beira de mar que fora derrubado por uma onda mais violenta quando lançava suas linhas no costão dos Ingleses, naquela mesma semana. Como havia quase nada para identificar no pouco que o mar devolvera, foi necessário que familiares dos dois mortos fornecessem material genético para a comparação. Daí, o título meio fantasioso da matéria.
Mas o que me chamou a atenção, nesse meio tempo entre o encontro do torso e sua identificação, foi a possibilidade de um terceiro morto – muito mais antigo que os dois primeiros, mas nem por isso menos qualificado a reivindicar aquele pedaço de corpo que o mar libertara de suas entranhas – entrar na disputa: tratava-se de um rapaz de vinte e poucos anos, que desaparecera enquanto tentava desentocar uma garoupa, durante um safári de caça submarina, e nunca fora encontrado.
O detalhe é que fazia quatorze anos que o mar o abraçara, e não houve reza brava que o fizesse devolvê-lo. Mesmo hoje, quase trinta anos depois de ter feito a matéria, não soube de notícias a respeito do encontro de seus restos mortais.
Por isso, acho que o mar tem lá suas razões, algumas insondáveis, para fazer o que faz. A dúvida é: por que alguns afogados conseguem a chance de ser sepultados em terra firme, enquanto outros têm como mausoléu a escuridão do mar – como na música ‘Angélica’, de Chico Buarque? Terá relação com a natureza de cada um, ou com a relação de cada um com o mar, em vida? Será uma punição pela ousadia de devassar algum recanto que o mar queira manter intocado? Ou, numa tese mais ampliada: será afinal uma punição ou uma recompensa vestir-se de mar para sempre?

Marco Antonio Zanfra

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