Porque ainda estamos aqui

Vi muita gente com lágrimas nos olhos, no saguão do cinema, após a sessão do filme “Ainda estamos aqui”. Alguns mais jovens, que não viveram as agruras do final dos anos 1960, início dos anos 1970; outros, madurões como eu, que de uma forma ou de outra, ouviram falar ou testemunharam os eventos citados no filme. “Testemunhar”, de verdade, é um verbo muito forte, porque a maioria de nós tinha pouco ou nenhum acesso às informações.

O filme retrata o drama da família Paiva em um tempo, em que predominava o medo. Tudo era feito nos umbrais, de forma velada, por debaixo dos panos. Para o público, em geral, o desaparecimento de um certo deputado Rubens Paiva era apenas uma notícia que chegava manca, picotada, como o de outros profissionais, jornalistas, professores, agricultores, metalúrgicos, estudantes.

À essa época, já concluindo o ensino médio, em termos de política, pode-se dizer que eu era um cidadão quase imaculado. Entre 1964 e 1969, vivi em um seminário, interno, completamente alheio ao mundo aqui fora. Tínhamos uma vasta biblioteca, de livros de aventuras, bibliográficos, mas nos era vedado o acesso ao noticiário de rádio, tevê, jornais, revistas. Minto, vez ou outra, alguém contrabandeava uma Playboy, disputada a tapas pela molecada, mas por motivos outros.

No colégio público, onde estudei por dois anos, tampouco tive contato com professores ou estudantes engajados na luta contra o regime. A coisa começou a mudar no cursinho pré-vestibular. Frequentava o Colégio Equipe, ali na Caio Prado, onde os professores, com o uso de alguns subterfúgios, tentavam nos esclarecer sobre a situação política do País.

As coisas não eram ditas diretamente na sala de aula, no máximo, alguma dica na lousa ou uma piada de duplo sentido entre uma lição e outra. Como houvesse suspeita de agentes do Deops disfarçados entre nós, pairava aquele misto de medo e tensão no ar. Ao sair da escola, em direção ao ponto de ônibus, ficava sempre aquela sensação de estarmos sendo seguidos.

A neurose era tão grande que certa vez ganhei um livro de histórias de guerrilhas urbanas. Não lembro do nome ou do autor, nem quem me deu. Só sei que, ao chegar em casa, o escondi. Coloquei-o num lugar tão inacessível que nunca mais consegui encontrá-lo. Pode ser que minha mãe, preocupada, jogou o livro fora, mas ela nunca admitiu isso.

A propósito, meus pais tinham uma certa consciência política, mas não comentavam nada em casa. Operário numa tecelagem do Tatuapé, vez ou outra, meu pai trazia para casa o boletim de seu sindicato. Eu devorava essas informações, relevantes para o movimento deles e nem sempre disponíveis na mídia em geral.

Em 1974, entrei para o curso de comunicação, com ênfase em jornalismo. Depois de um início tenso, pleno de desconfiança – naqueles tempos, desconfiava-se de tudo –  alguns mestres se tornaram nossos amigos. Era com eles que meu grupo se reunia, muitas vezes nas madrugadas regadas a cerveja, para debater a situação do País.

Em Brasília, pontificava o general Ernesto Geisel, sucessor de Garrastazu Médici, cujo governo foi um dos mais rígidos na repressão aos opositores do regime. Geisel tinha como proposta a abertura política, lenta e gradual, mas foi na sua administração que, em 1975, foi morto nos porões do DOI-CODI, em São Paulo, o jornalista Wladimir Herzog.  
 
Herzog, Rubens Paiva, Manuel Fiel Filho, entre outros nomes, se tornaram marcos na luta contra o regime de exceção, que só foi extinto oficialmente mais de10 anos depois. Seus algozes, embora identificados, nunca foram condenados. Alguns deles acabaram até anistiados.

Infelizmente, esse afrouxamento ou essa lassidão das leis é o maior responsável, nos dias de hoje, pelo surgimento de novos grupos incapazes de conviver dentro de uma democracia. Militares e mesmo políticos, eleitos pelo voto popular, que planejam golpes e até a morte de seus opositores. Por isso “ainda estamos aqui”, a cobrar todos os dias: “Anistia nunca, jamais!”

Manoel Dorneles  

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