Perigosa semelhança

É fato, é vero, como dizem gl’italiani, que para “morrer basta estar vivo”. Morre-se de enfarto fulminante, em um assalto, em um acidente automobilístico ou até por uma bala perdida. Mas pode se morrer também, quando a pessoa é confundida com outra. Não faz muito tempo, num quiosque da Barra, Rio de Janeiro, um médico foi metralhado, enquanto tomava calmamente uma cerveja com seus amigos. Evidentemente, a “encomenda” não era ele.   

Não na mesma proporção, mas uma dessas confusões também me afetou certa vez. Antes de mais nada, preciso dizer que não me acho parecido com ninguém, embora já tenha sido chamado de Eduardo Araújo, Raul Gazola, Charles Bronson, Ron Perlman (o ator de Hellboy) e, quando mais jovem, de Mariel Mariscot. E justamente essa suposta “semelhança” com o famoso policial fora da lei que quase me complica a vida.

Aos mais jovens, é preciso dizer que Mariscot, policial civil do Rio de Janeiro dos anos 1970/1980, cansado de brincar de mocinho, mudou de lado. Acusado de vários crimes e de integrar o Esquadrão da Morte, acabou fuzilado em 1981, no centro do Rio. Em tempo: ele foi morto quando descia do carro para um encontro com banqueiros do Jogo do Bicho.

Antes disso, com seu porte atlético e olhos verdes, costumava arrancar suspiros da mulherada, inclusive de algumas atrizes do cinema e da TV, com as quais se relacionou. No final dos anos 1970, cartazes com seu rosto de “procurado vivo ou morto” faziam parte da decoração de muitos postes e muros, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo.

Nunca vi o Mariscot pessoalmente, muito embora, vez ou outra, frequentasse algumas delegacias paulistanas. Naqueles anos dourados do jornalismo, sobrava aos “focas” como eu a revisão ou a reportagem policial. Passei pelas duas áreas. Alto, barba cerrada, preta ainda e nem sempre bem aparada, não demorou muito para que ganhasse o apelido de “Mariel” entre os meus colegas da revisão do Grupo Folhas.

Admito que realmente eu devia ter um certo ar policialesco lá pelo final dos anos 1970 e início dos 1980. A tal ponto que, certa vez, confundi até o Eduardo Suplicy, na época, redator de economia da Folha. Se bem que confundi-lo, convenhamos, nunca foi tão complicado assim (brincadeirinha).

Nos encontramos durante a cobertura de um ato pró-abertura política na Praça da Sé, em São Paulo. Os manifestantes ocupavam a catedral e a praça, enquanto o pessoal do Dops ficava de tocaia nos prédios vizinhos. E não é que ele foi perguntar a um colega meu da redação se eu não era um agente infiltrado na cobertura?

Bem, mas voltemos à Revisão da Folha e ao caso Mariel. Em 1977, trabalhávamos à noite e, muitas vezes, entrávamos madrugada adentro. Ao final do expediente, que ninguém é de ferro, costumávamos organizar de vez em quando uma festinha na casa de alguém – um queijo e vinho, um churrasquinho, regado a muita caipirinha, essas coisas inocentes.

Calhou de uma bela noite de sábado, de o pessoal que saiu mais cedo organizar um churrasco numa casa na região de Moema, bairro da zona Sul paulistana. Quando cheguei ao evento, horas depois, já não havia mais nem sinal de comida; só cachaça, limão e açúcar. Agradeci a oportunidade que a vida me dava e, em vez de uma limonada, fiz uma, duas, três, quatro, sei lá, perdi a conta de quantas caipirinhas. Agora, imaginem isso de estômago vazio… 

Sei que acordei na manhã do domingo numa maca do Hospital do Servidor Público, todo espetado por agulhas enquanto a glicose entrava gloriosamente pelas minhas veias. “Você que é o Mariel?”, indaga a bela enfermeira de plantão. Mesmo semidopado pela cachaça e pelos remédios, consegui me assustar o suficiente para enfiar a mão no bolso da calça e exibir meus documentos e, claro, me identificar corretamente.

Foi quando descobri que fora internado como Mariel, pois era assim que os dois camaradas que me socorreram me conheciam. Como não tínhamos muito contato, eles não sabiam meu nome verdadeiro. Por sinal, um deles, namorado da repórter Verinha Fiordoliva, amiga nossa, era médico residente naquele hospital e só por isso consegui ser atendido ali.

Dei graças a Deus ao fato de os plantonistas, seja por desconhecimento sobre quem era o procurado Mariel, seja por pena do meu estado, não terem chamado a polícia. Se o tivessem feito, naqueles tempos bicudos da ditadura militar, talvez eu não estivesse aqui para contar esta historinha…

Manoel Dorneles

2 comentários

  1. Bom texto! Aliás, a propósito, eu sempre tive problemas por causa da minha extrema semelhança com o Brad Pitt e às vezes com o Sean Connery.

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