Final dos anos setenta, eu repórter da Folha, uma mulher apaixonada por mim sentada ao meu lado no ônibus, e eu olhando para o outro lado, pela janela, ignorando-a. Não, eu não a estava desprezando, mas com a mente mergulhada na construção de um poema. Desse aparente descaso, nasceu:
Lembra/Quando eu era um mago/Que aprontava mil estragos com a varinha de condão/Provocava a chuvarada, e depois, na enxurrada, me tornava um capitão/Pilotando meu iate, eu partia pro combate contra um príncipe malvado/Mas, temendo a ausência tua, só chegava ao fim da rua e voltava pro teu lado.
Alguns anos antes, escriturário do Crea, apaixonado por uma bela moça que morava numa ruazinha sem saída no Brooklin, escrevi:
Lá, onde faz curva a rua/Onde se esconde a lua/Vive a morena dos dias/Das noites, das agonias/Vive quem me faz sonhar/Vive quem me faz morrer de amor/Lá, perdida na janela/Sonhando um sonho dela/ Vive a mulher, o momento/Por quem eu paro o vento/Por quem amanso o mar/E pra quem este lamento, esta dor.
Não me lembro de ter escrito outros, apesar de ainda ter-me apaixonado incontáveis vezes. É que, como no poema de Cecília Meireles, eu tive fases, como a lua. Escrevi ofícios, poesia, reportagens, estou terminando meu sexto romance policial e descarrego meu dia a dia, apesar do tempo tomado pelas lides domésticas, nestas crônicas, aceitando todo e qualquer desafio que o Nereu mandar. Todas essas atividades estão resumidas num só verbo: escrever.
Entendam os leitores que não estou sendo cabotino, querendo alardear minhas qualidades literárias, mas apenas descrevendo por que ainda me mantenho vivo. Com sessenta e nove anos, aposentado há nove, morreria se tivesse apenas de cozinhar, trocar uma lâmpada, pajear cachorro e gato, cortar a grama e recolher as carambolas que a árvore lança lá do alto. Escrever faz minha mente vaguear, mais do que vaguearia se estivesse lendo um livro.
Escrever é a essência, é o sangue que corre nas minhas veias, é a oxigenação que mantém o cérebro por enquanto imune às demências com que a vida às vezes nos presenteia. Ou, resumindo, também é isso aqui: escrever para explicar por que escreve.




