Carnaval de 1994. Manhã de sábado, mais ou menos 10h. Numa redação quase vazia, entro para preparar a primeira página da edição de domingo do Estadão.
 A primeira coisa que vejo é uma cena de muita ternura. De pé, encostado na mesa, o colega Durval Braga e seu indefectível bigode. Sentada, de costas para mim, mas de frente para o computador, uma menininha. Me aproximo, faço um carinho em seus cabelinhos e pergunto:
 ‒ Ah, veio trabalhar com o papai? Antes que ela respondesse, Durval apressou-se a responder.
 ‒ Não, não é minha filha, não!
 Só então me dei ao trabalho de olhar para o rosto da não-filha de meu colega. Na verdade, ela era uma nova diagramadora. Bem baixinha, mas bem adulta. Meio aturdido e sem me atrever a abrir a boca de novo, fui para a minha sala. Começava mal meu carnaval.
 Menos de cinco minutos depois, entra na pequena sala o editor de fotografia Fábio Moreira Salles. Mas mãos, um punhado de fotos. Nada mais natural. Educadíssimo, estranhei não ter me cumprimentado. Disse apenas seis curtas palavras.
 ‒ Você tem uma bomba nas mãos.
 Alguns jornalistas têm o costume de supervalorizar determinados acontecimentos, mas esse não era o caso de Fábio. Pego as fotos, cinco ou seis delas e logo percebi o poder explosivo da bomba.
 Nas imagens, uma jovem bastante desinibida abraçada a um feliz Itamar Franco, presidente da República. Com um detalhe: a foto, tirada de baixo para cima, revelava que a jovem estava sem calcinha, aquela peça íntima que as mulheres usam sob a roupa. Revelava também toda a sua intimidade de maneira ampla, geral e irrestrita. Só não veria quem não quisesse ver.
 Tudo bem que o carnaval costuma ser um tanto lascivo, permissivo, meio desnudo. O único ponto fora da curva (os das curvas) era o presidente da República, que certamente não sabia o que se passava abaixo de cintura de sua acompanhante de momento.
 Certamente eu tinha uma bomba nas mãos e de alguma forma teria de lidar com ela. Mantive a fleuma e liguei para o diretor de redação. Nada. Telefone na caixa postal. Liguei para o editor-chefe. Nada. Caixa postal. Soube depois que estavam no Rio, para o carnaval. Estávamos em regime de plantão e ambos estavam de folga.
 Olhei para Fábio e ele me desejou boa sorte.
 Fiquei sozinho.
 Todo fim de tarde de domingo o doutor Júlio Neto, diretor-geral do jornal, ligava para quem estivesse na edição da primeira página. Geralmente essa pessoa era eu mesmo. Júlio Neto era um homem educado. Queria saber se havia alguma novidade e sempre perguntava o resultado do jogo do São Paulo Futebol Clube. Meu contato com ele era meramente formal, profissional, patrão/empregado, mas sempre cordial.
 Pensei. Liguei para o doutor Júlio. Para quem mais ligaria?
 Seguiu-se um dos diálogos mais difíceis (e, hoje, hilariante) de minha carreira de jornalista.
 ‒ Bom dia, dr. Júlio.
 ‒ Bom dia.
 ‒ Dr. Júlio, tenho em mãos algumas fotos e gostaria de sua opinião.
 ‒ Sim…
 ‒ O presidente Itamar Franco está abraçado a uma jovem que está sem nada por baixo.
 ‒ Como sem nada por baixo?
 ‒ A foto foi feita de baixo para cima e está aparecendo tudo.
 ‒ Tudo o quê?
 ‒ Tudo, dr. Júlio. A moça está sem nada por baixo da saia. Aparece tudo.
 ‒ Sim, mas tudo o quê?
 Nesse momento passou pela minha cabeça dizer a um homem formalíssimo certas palavras que poderiam chocá-lo e colocar-me em maus lençóis. Obviamente desisti. Em boa hora, pois acabava de entrar na redação o chefe dos editorialistas, Oliveiros S. Ferreira.
 Acenei para que ele viesse rapidamente e, enquanto falava com dr. Júlio, passei-lhe as fotos.
 ‒ Você acionou o diretor de redação, o editor-chefe?
 Fiz-lhe um sinal de positivo.
 ‒ Ligue para o Júlio.
 Passei-lhe o telefone.
 ‒ Júlio, a moça está nua!
 ‒ Nada por baixo.
 Suponho que dr. Júlio tenha feito a Oliveiros as mesmas perguntas que havia me feito.
 ‒ Tudo, Júlio! Estão aparecendo os grandes lábios!!!! Não podemos publicar. É o presidente da República!!!
 Mais alguns segundos de conversa e Oliveiros desligou o telefone.
 ‒ Carlos, não publicaremos na primeira página. Apenas uma foto discreta dentro.
 Bomba desarmada, fechei a capa de domingo.
 No dia seguinte, O Globo e o Jornal do Brasil (não estou certo sobre a Folha) abriram a foto em suas capas.
 Na segunda-feira à tarde, toca o telefone em minha sala. Para minha surpresa era o dr. Júlio.
 ‒ Carlos, deveríamos ter publicado a foto na primeira página.




