No início de minha carreira como jornalista, apanhei muito por causa da greve dos outros. Repórter novo, cobrindo greve, sabe como é: está onde estão os piquetes e as passeatas; consequentemente, está onde estão a pancadaria e as bombas de gás lacrimogêneo da PM. Seja em São Bernardo do Campo ou no centro velho de São Paulo, tomei muita porrada e respirei muito gás na onda das greves dos metalúrgicos, dos bancários, dos estudantes, do raio que os parta.
Só uma vez apanhei não como coadjuvante, mas como protagonista: foi na histórica e fracassada greve dos jornalistas de São Paulo, que agora em maio está completando 45 anos. Apanhei na frente do Estadão, no Bairro do Limão; apanhei na frente da Folha, na Barão de Limeira; apanhei na frente dos Diários, na Sete de Abril. Foram seis dias de greve, seis dias de piquetes e pelo menos três dias de confrontos com a polícia.
Ganhamos alguma coisa? Sim: experiência, muita experiência. Ao final, voltamos às redações com o rabo entre as pernas, esperando as demissões que certamente ocorreriam.
Não estou aqui para fazer um resgate histórico, buscar causas e consequências da paralisação. Quero apenas lembrar de minha participação no movimento, da participação de um repórter de 23 anos, açodado como quase todos os jovens, que defendeu a greve com veemência em todas as assembleias e só reconheceu que ela era inoportuna e precipitada depois de seu fracasso. O tal do gato escaldado, se me entendem.
Não fui o único gato escaldado, claro. Mas assumi o erro da greve como o erro de toda uma categoria. Não elegi um único culpado, com muitos o fizeram, transferindo a culpa para o presidente do sindicato à época, Davi de Moraes (falecido recentemente), apelidado maldosamente de Jim Jones, por ter supostamente levado a categoria ao suicídio.
Ora, ora, uma classe vaidosa e arrogante, como a dos jornalistas, virou simples massa de manobra nas mãos de um único homem? Aquelas mentes iluminadas deixaram-se levar docilmente como bezerros para o abate? Foram iludidos, os coitadinhos?
Eu me lembro de assembleias históricas na igreja da Consolação e no Tuca, o teatro da PUC, onde, na madrugada de 23 de maio, foi decretada (com a exigência de dois terços dos votos) a paralisação. O básico da reivindicação era: queríamos 25% de aumento, os patrões ofereciam 16% de antecipação; a última contraproposta – transformando 2% do que era oferecido como antecipação em aumento – nem foi feita pessoalmente: os patrões limitaram-se a publicar um anúncio nos jornais. O repúdio teatral de Perseu Abramo, rasgando o anúncio no palco do Tuca, certamente serviu para convencer muitos indecisos.
Foram seis dias de sufoco, mas os jornais não deixaram de sair um único dia: feito com notas de assessorias de imprensa, telex de agências de notícias e a mão de obra dos fura-greve, era um jornal de má qualidade, que chegava ironicamente a noticiar a própria paralisação. Mas quem, além dos chatos dos jornalistas, preocupava-se com a qualidade do jornal que estava nas bancas? O povo comprava e não chiava, o que nos levou a patéticos apelos, pedindo que as pessoas deixassem de adquirir jornais para apoiar nossa greve. Patéticos e presunçosos.
Imagens desses longínquos seis dias que me marcaram e não me saem da memória: motoristas da Folha tocando o caminhão por cima de grevistas sentados no asfalto da Barão de Limeira; Henfil, na sede do sindicato, agachado, desenhando um a um os cartazes com bodes orelanas e graúnas que pediam apoio a nossa greve; Bóris Casoy, então editor-chefe da Folha, fazendo tchauzinho, da sacada do quarto andar do prédio da Barão de Limeira, aos grevistas que buscavam receber o salário do outro lado da rua; a fumaceira tóxica que se espalhava pela Engenheiro Caetano Álvares e pelo córrego Mandaqui, na madrugada gelada em que a PM baixou o pau com mais vontade na saída dos caminhões do Estadão…
Faz 45 anos, mas parece que foi ontem.
(Imagem: arte sobre capas do jornal do Sindicato dos Jornalistas de SP)