Dizem alguns que é de Carlos V, outros que de Napoleão, a frase “Deve-se falar espanhol com Deus, italiano com os anjos, francês com as mulheres, alemão com os soldados, inglês com os cavalos” Mas eles não falaram do português?, indago eu, então imberbe ginasiano, para o padre Antônio, meu professor dos tempos do seminário, ele também português. “Não, para eles, o português não passava de um dialeto”, responde. E olha que dialeto então não tinha o mesmo sentido pejorativo dos dias de hoje.
De qualquer forma, a resposta do padre mexeu com meus brios de adolescente brasileiro e ufanista. Não sei quanto a vocês, mas para mim, nos tempos do ginásio, tudo o que se referia ao Brasil era o mais importante e o melhor do mundo. Talvez, Carlos V, se foi ele mesmo o autor da frase, não estivesse de todo errado. Afinal, no tempo do Grande Império Romano-Germânico, o “filhote” da “última flor do Lácio inculta e bela” era falado apenas em um pedacinho de terra da Europa, pouco menor que Pernambuco.
Lembrei dessa passagem, ao terminar de ler o excelente livro Latim em Pó (Companhia das Letra), do linguista e professor curitibano Caetano Galindo. Recomendo a todos que, de uma maneira ou de outra, estão envolvidos com o idioma, que vamos chamar aqui de “língua brasileira”. Sem se aventurar muito pela história sócio-política, o autor vasculha o berço das línguas indo-europeias, passa pelo latim, evidentemente, pelo falar dos chamados povos ‘bárbaros’, e chega ao nosso português.
Se o latim tem raízes no grego e demais línguas faladas no médio-oriente da Antiguidade, o português surgiu da influência desse mesmo latim, imposto pelos romanos aos descendentes de celtas, antigos habitantes da Península Ibérica, além da convivência posterior com invasores suevos e visigodos, e mais tarde, os mouros. Claro que na Lusitânia dos romanos não se falava o latim de Cícero (Kíkero, como diziam), dos tribunos, engenheiros e aristocratas, mas o dos legionários iletrados, artesãos, lavradores e até das prostitutas.
Desse caldo todo, acrescido dos dialetos dos bárbaros (todos além das fronteiras do império o eram, na opinião dos romanos) e dos mouros, que invadiram a Península, séculos depois, nasceu o arremedo da língua que falamos hoje. Da mesma forma que o latim, o português se manteve em constante evolução ao longo dos séculos e absorveu todos esses falares, assim como a nossa “língua brasileira” o faz nos dias que correm.
O fato é que a ascensão e expansão do português se deu por conta da coragem, tenacidade e ousadia dos navegantes lusitanos, como aprendemos nos livros de História. Não por acaso, o idioma chega aos nossos dias como o terceiro ou quarto mais falado no mundo. São mais de 200 milhões de falantes no Brasil e cerca de 100 milhões, se considerados Portugal, ex-colônias portuguesas da África, além de outras na Índia e no sudeste asiático.
É uma língua mais viva do que nunca, que cria, recria, reinventa-se. Nesse ponto, pode-se dizer que a “língua brasileira” leva alguma vantagem sobre o português falado na Europa. E, num caminho inverso, até o influencia, por causa de novelas e programas brasileiros, para o desespero dos linguistas lusos. Além disso, enquanto Portugal permaneceu, digamos, mais recluso, o Brasil sempre esteve mais aberto a imigrantes dos mais diversos países.
Os primeiros colonizadores a desembarcarem no Brasil-Colônia, a exemplo dos romanos na Lusitânia, também não eram letrados. Falavam o português das ruas, que aqui acabou influenciado pelos idiomas dos povos originários e pelos negros escravizados. Dessa junção, surgiu entre outros dialetos, o nheengatu, até hoje falado por ribeirinhos da Amazônia. Mas só em 1823, um ano após a Independência, começou a ser unificado um Brasil que falava português. A propósito, a Amazônia passou a ser considerado um território lusófono apenas em 1920.
Ainda durante o Império e após a República, o País continuou a receber levas e levas de colonos italianos, alemães, japoneses, entre outros. Não obstante essas influências, o sonho dos brasileiros mais abastados sempre foi o português da Corte, dos nobres. O que eles nunca conseguiram impedir é que a cada dia fosse criada uma nova palavra ou expressão, derivada do falar coloquial dos morros, das favelas, das ruas. Com ajuda da polícia, chegaram até a proibir rodas de samba, capoeira e de outras manifestações populares, notórios criadouros de vocábulos e termos chulos, na opinião deles.
Mas a “língua brasileira” dos tempos modernos está ainda mais eloquente, aberta a todo tipo de colaboração. Com o advento da tecnologia, palavras de origem inglesa acabaram absorvidas e transformadas para o nosso uso cotidiano. Querem um verbo mais original e apropriado do que “deletar” (to delet inglês), que substitui com folga o nosso apagar? Já há quem fale com naturalidade em “estartar” (to start = começar), notadamente no meio publicitário, mas nesse caso eles também exageram, não é?
Entre o passado não tão distante e a contemporaneidade, ao mesmo tempo que incorporamos, deixamos pelo caminho termos e expressões bem adequados à época deles, mas que aos poucos caíram em desuso. No entanto, outros desses vocábulos são tão precisos, tão vivazes, saborosos, que é impossível abandoná-los. Quando digo “sinuoso”, parece que estou acompanhando o termo em cada curva; quando digo “sacolejar”, a impressão é que realmente não consigo parar sentado no mesmo lugar. Ou seria apenas um “delírio” ou “devaneio” meu? (Olha que lindo!)
Nesse vai-e-vem da nossa ‘língua brasileira”, lembramos da redução da expressão “Vossa Mercê”, que virou “vosmecê”, “você”, “ocê” dos mineiros e o “cê”. Como não lembrar da “sincopada” carioca na frase “qual é a situação?”. Isso virou “qualé?” e chegou ao simpático “coé?”, ouvido frequentemente nas ruas do Rio de Janeiro.
Pelo sim, pelo não “coé, mermão?”
Manoel Dorneles
Contando História
O que o tempo altera e vira história
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Belo texto! Sempre é bom aprender!