Primeiro dia:
Nunca tive problema para enfrentar as máquinas de ressonância magnética e tomografia, apesar de seu aspecto cavernoso mexer um pouco com aquele fundinho de claustrofobia que, acho, todos nós temos. Por isso, pensei que tiraria de letra meu primeiro encontro com o acelerador linear de partículas, que teria de enfrentar no início de meu tratamento de radioterapia, para combater a recidiva bioquímica do câncer de próstata.
Só que a máquina, fui saber na hora, em nada lembra um buraco onde você deve passar alguns minutos completamente imóvel e com a bexiga cheia! Dá mais medo de ser abduzido do que de enfrentar a clausura, graças a seu aspecto de nave espacial. Ou, numa visão mais terrena e simplória, dá mais medo de sair encharcado, porque o aparelho lembra um grande chuveiro equipado com turbo.
Passei menos de vinte minutos sob a sombra do acelerador de partículas nesta quarta-feira, 12 de novembro, e, juro, fiquei muito mais preocupado com a bexiga, que parecia a ponto de estourar. Nem sabia se já tinham começado a acelerar minhas partículas, mas, por ora, não senti nenhum sinal físico. Durante as vinte sessões a que serei submetido, diariamente, certamente terei acesso a uns efeitos colaterais – que não são poucos, segundo as ‘Orientações para pacientes em radioterapia de pelve’, organizado pelas enfermeiras do Centro de Pesquisas Oncológicas (Cepon).
Segundo dia:
Com a bexiga menos cheia, e já mais familiarizado com o ‘chuveirão’, quase nem senti o tempo passando enquanto a máquina dava duas voltas completas, ida e volta, em torno de minha região pélvica, que está cheia de marquinhas de caneta, provavelmente para que o bicho não erre o alvo. Duas enfermeiras me acompanham. Eu, normalmente, ainda me sinto bem diante da presença feminina. Sinal de que o tratamento vai doer menos do que eu pensava.
Ainda não sinto qualquer sintoma físico, e a enfermeira ‘comandante’ disse que possíveis efeitos colaterais podem surgir apenas mais ao final da terapia. Mas não são poucos: cansaço, cólica abdominal, diarreia, aumento da frequência urinária, sangue na urina e, até, risco de fratura óssea nos dois anos subsequentes. Tenho até 9 de dezembro para saber se o lado negativo do tratamento vai me acertar. Uma coisa, pelo menos, já sei (e isso tranquilizou minha mulher): não vou ficar radioativo.
Outra coisa que a enfermeira me disse é que, ao final das sessões programadas, a gente toca o sino da vitória na recepção do Setor de Radioterapia, mesmo sem saber se obteve a vitória. O sino representa apenas o término da etapa de tratamento. Você só vai saber se venceu o câncer algum tempo depois, talvez dois meses, a partir de exames pormenorizados. A moça disse que os resultados demoram um pouco para aparecer.
E vou parando por aqui, no segundo dia. Isto é para ser apenas uma crônica, não o diário do tratamento de um paciente de câncer. Relaxem, assim como eu estou relaxando.
Em tempo: Titulei o texto com o número de meu prontuário porque me lembrei de uma crônica que escrevi em março de 2010, que levava no título, justamente, o número do prontuário de uma adolescente abandonada à sorte numa clínica psiquiátrica. Quem se interessar, o material segue abaixo:
A paciente 23.225
Quando criança, eu tinha medo de passar pela frente do Hospital Psiquiátrico Pinel, em Pirituba. Embora da avenida Raimundo Pereira de Magalhães fosse possível ver apenas o bloco da portaria e o prédio da administração, no alto, parcialmente encoberto por árvores frondosas, eu imaginava que por trás daquela aparente quietude houvesse um batalhão de loucos furiosos prontos a pular em meu pescoço e carregar-me sabe-se lá para que profundezas. Naquele tempo, eu não via diferença entre o que seria o inferno cristão e o espaço onde a insanidade estava confinada.
O medo de passar pelas cercanias do Juqueri era um pouco maior, porque eu tinha na imaginação que era para lá que todo garoto de vida torta seria levado, mais cedo ou mais tarde, para aprender a comportar-se como os adultos exigiam. Mas como a gente tinha que pegar o trem para ir ao Juqueri, em Franco da Rocha, o Pinel acabava parecendo mais assustador, por ser mais próximo.
Como repórter, conheci amplamente as instalações do Juqueri – tanto do hospital psiquiátrico quanto do manicômio judiciário – e vi que, embora não fosse nenhum recanto aprazível, era bem diferente daquilo que eu imaginava que fosse. No Pinel, porém, nunca entrei. O máximo que me permiti, já adulto, foram dez a quinze passos para além do portão, até a farmácia, no bloco da portaria, à procura de comprimidos de carbamazepina, anticonvulsivante que me vi obrigado a tomar durante sete anos. Por isso, não sei até hoje se por trás da quietude do prédio da administração há um inferno cheio de loucos furiosos prontos a pular no meu pescoço. E não sei até hoje se meu medo era justificado ou não.
Lembrei-me do mistério que continua sendo até hoje para mim o Pinel quando li na Folha de S. Paulo deste domingo a bela matéria sobre a adolescente que, mesmo não carecendo de internação, está há quatro anos e três meses confinada no hospital psiquiátrico, porque sofre de uma doença para a qual ainda não foi descoberta a terapia: o abandono. Ninguém a quer por perto, e por isso – por não ter para onde ir – ela está condenada a viver confinada num estabelecimento manicomial.
Identificada na matéria como “a paciente 23.225” – o número de seu prontuário médico – ela foi internada aos 11 anos por apresentar transtornos de conduta: “inteligente, agressiva, indisciplinada, sem respeito, fria e calculista” foi a descrição que fizeram dela ao buscar ajuda médica. Nada de psicoses, esquizofrenias, paranoias. Os médicos viram que não era motivo de internação e deram-lhe alta. Mas para ir para onde?
Nem só a família não a quer. A direção do hospital tentou colocá-la em vários abrigos, mas não encontrou vaga em nenhum deles: o estigma Pinel provavelmente não recomende sua aceitação. “O isolamento social é extremamente prejudicial aos quadros de transtorno de conduta. O hospital psiquiátrico não é local para tratamento de longa duração. A paciente precisa ser encaminhada para serviço ambulatorial especializado para continuar seu tratamento e para que se promova sua reinserção na sociedade”, diz o relatório de um setor de assistência psiquiátrica a adolescentes sobre a garota. Mas quem a quer?
Fico imaginando quantos loucos ou nem tanto estão por aí, esquecidos nos pinéis e juqueris da vida, porque ninguém quer assumir a responsabilidade de cuidar deles. Quem quer um transtorno por perto, se tem o Estado para assumir, ainda que mal e mal, a incumbência? Quantas mais “pacientes 23.225” devem existir por aí, varridas para debaixo do tapete pela omissão familiar?
Marco Antonio Zanfra





Nossa, nada se novo, né? Acredito que hoje (ou quero pensar) não exista mais nada desse tipo!
De qualquer forma, quantos abandonados ao léu, por negligência, pois as famílias não os querem, por dar “trabalho”!
Espero que não tenha tido nenhum dos efeitos colaterais e que o corpo, cure o corpo!