Fiquei sabendo, pelo semanário Jornalistas&Cia, que o incansável amigo Assis Ângelo, cego desde 2013, recebeu o Prêmio Notório Saber, concedido pelo Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo, por sua trajetória na valorização da cultura popular brasileira. Em vista disso, lembrei-me de uma crônica que escrevi, em janeiro de 2023, inspirada nele e em sua condição de perder a visão depois de passar a maior parte da vida com a capacidade de enxergar a luz. Acho que, com o reconhecimento talvez tardio de seu trabalho, a crônica merece ser revisitada.
Evanescat lux
Às vezes, fico pensando como seria perder a visão depois de velho.
É claro que deixar de contar com qualquer dos sentidos ou faculdades motoras e intelectuais deve ser difícil – só para comparar: fiquei apavorado quando perdi o olfato por um único dia, por causa da Covid – mas ficar sem enxergar deve ser o pior dos calvários. Fiant tenebrae, façam-se as trevas, ao contrário da ordem divina para o surgimento da luz.
Se você perde o movimento das pernas, passa a se mover com uma cadeira de rodas. Se fica surdo ou mudo, pode expressar-se por sinais ou pela escrita. Mas, e se ficar cego? Passa pela minha memória um trecho da peça ‘O milagre de Anne Sullivan’, que assisti na minha adolescência, em que Hellen Keller aprende a se comunicar por pressões nas palmas das mãos…
Mas ela nasceu assim! Era cega, surda e muda de nascença! Portanto, por ser deficiente desde o berço, não teve a supressão dos sentidos através dos anos e não teve de aprender a viver sem eles. Mas quando isso acontece quando alguém já viveu parte sua vida – mais da metade, às vezes – e tem de se acostumar à ausência de algo que fazia parte de sua tarefa de viver?
O inspirador desde texto é o amigo Assis Ângelo, jornalista tarimbado, pesquisador e estudioso da cultura popular, que há mais de dez anos teve descolamento de retinas e perdeu a visão dos dois olhos. Trabalhador incansável, ele não parou até hoje. Aliás, está até produzindo mais. Mas é claro que não consegue fazer as coisas sozinho: depende de alguém para ler para si, depende de alguém para digitar seus textos, depende de alguém que substitua a função de seus olhos – embora ele diga que não está enxergando, mas não perdeu a visão.
Aprendi com ele que a adaptação ao novo estágio da vida depende de resignação. Quando o visitei, logo no início do trauma, peguei-o medindo os passos entre o sofá da sala e a porta do apartamento e entre a porta do elevador e a portaria do prédio, ainda manuseando tropegamente a bengala apropriada e lutando para manter a caminhada em linha reta. Estava dando os primeiros passos para se adaptar à sua nova condição de mobilidade.
Falo bastante com ele ao telefone e percebo que sua energia, agora aos 70 anos, vem continuamente sendo renovada. Como eu disse, resignação. A nova condição não tem volta. Então, ou você se adapta a ela, ou morre, ainda que em sentido figurado. Ele se adaptou, felizmente para nós, seus amigos.
Mas eu não sei se me adaptaria. Não sei se conseguiria deixar de ver a novela, saber se está sol apenas olhando pela janela, saber que aquele barulho são as ondas batendo, acompanhar os pés de alface crescendo na horta, deliciar-me com a beleza feminina passeando na praia, escrever, escrever e escrever, corrigindo meu próprio texto, escolher as imagens que vão ilustrar a postagem, mexer com as imagens no Photoshop, rabiscar a aprender a pintar com aquarela, dirigir pelo trânsito caótico, jogar paciência spider no celular, fotografar a natureza, que parece cada vez mais exibida e fotogênica…
Não sei realmente se conseguiria.
Em tempo: para me ajudar com as expressões latinas evanescat lux (evaneça-se a luz, o oposto de faça-se a luz-fiat lux) e fiant tenebrae (façam-se as trevas), contei com a sabedoria e boa vontade do sobrinho Marcello Peres Zanfra, doutor em Letras Clássicas pela USP.