O ambiente era ruidoso, mas, durante alguns recortes de silêncio, era possível ouvir seus reclamos: ooouhmmm! krrrmmmooomm! mmrraaaammmooouu!
Se houvesse um tradutor para roncares de estômagos famintos, talvez desse para entender banana flambada au cognac! medalhão de filé mignon ao molho madeira! lagosta à thermidor!
Mas não estávamos na Osteria Francescana,e sim na fila de um bandejão popular. Comida a um real e cinquenta na rua João Pinto. Povo e mais povo. E então ouviríamos ovo frito oleoso com gema dura! batata cozida empedrada! feijão preto aguado! gelatina de uva! Isso se houvesse um tradutor para roncares de estômagos famintos, bem entendido!
Na minha frente, uma moça bonitinha, dez centímetros mais baixa que eu e olhar impaciente. Arrisquei:
“Parece que nossos estômagos estão conversando…”
Ela nem olhou para mim ao responder:
“Não, não… meu estômago está falando sozinho. Ele não fala com estranhos. Assim como eu…”
Sorri. Povo e mais povo. Bandejão popular. E ela se sentindo no Arpège de Paris! Insisti:
“Você vem sempre aqui?”
Ela fez de conta que não ouviu, ou que não estavam falando com ela, ou que tinha escutado a cantada mais besta de todos os tempos.
Era bonitinha, tinha cabelos na altura dos ombros, olhos castanhos. Vestia uma minissaia jeans com a barra esgarçada, uma camiseta rosa com lantejoulas coladas no peito em formato de coração. Nos pés, sandálias que já haviam sido douradas, mas perderam o brilho frequentando dois ou três brechós de caridade. Seu estômago emitia regougos muito sensuais, entretanto. Insisti de novo:
“Você sabia que a gente precisa de duas mil calorias, por refeição, para sobreviver? Se você, lá na frente, colocar duas colheres de arroz, uma batata cozida e um ovo frito no prato, vai ter de entrar na fila sete vezes para suprir sua necessidade…”
De novo, ela fez que não era com ela. Mas, desta vez, seu silêncio fez-se acompanhar de uns olhos de mas esse cara não se toca?!
Pouco mais à nossa frente, tinha um cara grandalhão. Maltrapilho e grande. Com uma carantonha de fome. Aparentemente, com uma necessidade de calorias muito além da nossa. E que parecia não querer entrar na fila sete vezes. Por isso, ia garfando as batatas, cavoucando a montanha de arroz e escorregando os ovos untuosos para seu prato. Fiquei preocupado. Até parei de azarar a grosse mangeuse à minha frente. E se não sobrasse para nós?
Aí, passou a ser questão de sobrevivência. Quantos ovos ele deixaria? E quantas batatas cozidas? Trocaria minha gelatina de uva por um ovo, que tal? Pode ficar com as batatas, também.
E a fila foi andando e fomos nos aproximando das ruínas que o grandalhão deixara. Menos de um Coliseu de arroz. Um terço do que sobrou de Éfeso em batatas. E um ovo frito. Um mísero ovo frito. Que, obviamente estaria no cardápio de minha coleguinha de fila – cardápio que eu sugeri, aliás. A não ser que…
Desculpem, mas era a lei da selva. A lei do mais forte. Seleção natural. Eu certamente poderia ter contado com a anuência de Darwin quando, gentilmente, me interpus entre a moça e o balcão e fisguei para o meu prato o último e mísero ovo. Vocês precisavam ter visto a cara dela. E precisavam ter visto a cara dela de novo quando eu disse que ela podia ficar com minhas batatas e minha gelatina de uva.
Como eu disse, questão de sobrevivência. Eu não poderia ficar sem as 107 calorias do ovo frito. Não naquela hora, no calor da fila. Mesmo porque tenho certeza de que meu estômago ronquejou para o ovo antes do estômago dela.
Ao ler o titulo, a primeira lembrança que veio à minha mente foi o bandeijão do restaurante do Folhão. Nunca esqueço que a todos era servido um galeto inteiro no prato, sempre bem temperado e bem tostado. Saudades daquwle tempo.
Detalhe: frangos e ovos diretamente da Granja Itambi, de São José dos Campos.
Você vem sempre aqui? Cantada mais manjada, o Tiozão da Sukita era bem mais criativo…