Tive de chegar mais perto para descobrir que aquele objeto meio disforme boiando na piscina era uma borboleta. Ela estava imóvel, pousada levemente sobre as águas, as asas em pandarecos.
Calculei que suas asas destruídas, como roupas velhas corroídas por traças, haviam feito com que perdesse a sustentação do voo e fosse obrigada a respeitar a lei da gravidade. Um acidente aéreo, pois. Com uma única vítima, porque borboleta não tem copiloto.
Apanhei a rede para içá-la da água e fui surpreendido ao perceber que ainda estava viva. Passou a abanar os pedaços das asas e deve ter tossido para expelir alguma água que havia entrado nos pulmões, mas o fez em silêncio. Fiquei imaginando que, como o acidente de que fora vítima dera perda total, ela teria de passar numa oficina para reparar o que lhe restara da sustentação e aproveitar para uma revisão completa. Do jeito que estava, não tinha condições de voar…
Ou tinha?
Se já tivera uma surpresa ao descobri-la viva, mais surpreso fiquei ao vê-la alçando voo. Parecia um Fusca velho, todo remendado e amarrado com arames, mas estava cumprindo a função básica de locomoção. Como, tal qual o Fusca, ela não teria de passar por vistoria para ter sua circulação autorizada pelo Detran, era só pôr gasolina e sair rodando…
Foi aí que me toquei que, embora a tenha julgado morta e tenha usado a rede apenas para limpar a piscina, salvei-lhe a vida! Fui um herói, dentro das concepções diminutas que uma borboleta pode ter a respeito de atos heroicos. Salvara-lhe a vida, o que, acima de qualquer ponderação, era seu único e irrecuperável bem. Podia, para completar meu ato, presenteá-la com asas novas, para substituir as que o acidente havia reduzido a frangalhos, mas isso qualquer Luciano Huck faz! Salvar-lhe a vida, só eu!
Diz o ditado que a ocasião faz o ladrão; mas pode também fazer o herói. Por uma única e simples circunstância você pode tornar-se um benfeitor, ainda que não tenha o heroísmo como atribuição curricular. Um gesto simples e despretensioso e, puf!, lá está você na galeria da fama dos paladinos da pátria. Como aconteceu com um sargento que, há mais de 40 anos, lançou-se ao viveiro das ariranhas no zoológico de Brasília para salvar um garoto que ali caíra e acabou atacado e morto pelos bichos. Por uma circunstância única e simples, ele foi eternizado na galeria de ouro.
Seu ato de heroísmo acabou gerando, porém, atos de covardia: ao questionar, numa crônica na Folha de S. Paulo, se aquele sargento não era efetivamente o herói, em confronto com aqueles que tinham virado estátua, como o Duque de Caxias, e nos eram vendidos como heróis pelo patriotismo cego das aulas de moral e civismo, o escritor Lourenço Diaféria – tão querido como escritor como quanto pessoa! – acabou preso pela Polícia Federal. Nos anos de chumbo da ditadura militar, ele foi preso porque tivera a terrível ousadia de questionar quem realmente cometera um ato de bravura.
Eu não cheguei a enfrentar ariranhas, ou erguer espadas sobre cavalos de bronze, mas cometi, resguardadas as devidas proporções, um ato de heroísmo. Salvei uma vida, ainda que meio por acaso, e isso é o que importa. Quem duvidar, que vá lá perguntar àquela pobre borboleta…