Sonhei que tinha sido eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Estranhei, a princípio, porque não tinha me candidatado. Nunca me julgara à altura. Por isso, quando alguém que disse ser Merval Pereira telefonou, pensei que era trote. Depois, indignado, perguntei o que eu tinha feito de errado para merecer ligação de um tipo como Merval. Do outro lado da linha, ele não percebeu minhas elucubrações e marcou minha posse.
Eu ia ocupar a cadeira número 12, coincidentemente o mesmo dia de um longínquo abril em que nasci.
O termômetro marcava 34 graus no dia da posse. Resolvi ir de bermuda e camiseta, por causa do calor. Afinal, o sonho era meu e eu tinha o direito de decidir o traje. Além disso, para mim, ‘passeio completo’ é você ir e voltar.
Cheguei no Petit Trianon e dei de cara com uma velharada vestindo fardão verde, com galardões dourados. Ninguém parecia notar minha presença. Nem mesmo um senhor vetusto e encorpado, que tinha sobre o lábio superior um bigode que lembrava duas taturanas em colóquio amoroso, e estava placidamente sentado na cadeira de número 12. A minha cadeira.
– Acho que o senhor está na minha cadeira… – sugeri.
O cara não se levantou, mas pareceu crescer. Seu bigodão estremeceu e ele soltou fogo pelas ventas:
– Como ousas encaminhar-me a palavra, frangote? Lava tua boca para dirigir-te a um major das Forças!
Não corri porque minhas pernas ficaram paralisadas. E, mesmo se quisesse fugir, tinha um magrinho de bigodes finos e caídos impedindo meu caminho. Foi ele, aliás, quem me acolheu e disse que eu não devia temer o ‘major das Forças’:
– Não temas, meu jovem! Urbano Duarte não mataria uma mosca! E principalmente não verteria sangue num ambiente sagrado! Mas não devias mexer com ele…
– Mas eu não quis mexer com ele! Apenas disse que ele estava ocupando minha cadeira! – balbuciei.
– Tua cadeira!? Blasfemas? Não sabes, pois, que quem está ali acomodado é Urbano Duarte de Oliveira, fundador da cadeira número 12 da Academia de Letras? E que a ocupou até sua morte, em 1902?
– 1902?! Mas estamos em 2025, senhor… senhor…
– Joaquim José de França Júnior, teu criado, orgulhoso patrono da cadeira ora ocupada por seu fundador, Urbano Duarte…
– Pois então, seu Joaquim, se ele morreu em 1902, o que está fazendo hoje, cento e vinte e três anos depois de sua morte, na cadeira que fundou? – perguntei.
– Ora, meu rapaz, estás sonhando, não te lembras? E esperas coerência na relação tempo-espaço num sonho? Urbano Duarte vai permanecer ocupando o lugar que dizes ser teu até que as circunstâncias de teu sonho o determinem – explicou França Júnior.
– E, logo que meu sonho assim o definir, posso facilmente me sentar… – deduzi.
– Não tão facilmente! – intercedeu outro bigodudo – ou, devo dizer, dono de um vassourão sob o nariz. – Pela ordem, devo ser o próximo a ocupar tão nobre cadeira!
– Tem razão o caro Antônio Augusto de Lima – concedeu o patrono – já que, independentemente de estar à revelia num sonho teu, meu jovem, ele foi o sucessor de Urbano Duarte na cadeira de número 12. Ocupou-a com certo tardar, é verdade, quatro anos depois de ter sido eleito para ela, mas faz jus ao assento até sua morte, em 1934. Como se vê, mais perto deste, como dizes, 2025!
– Pois bem, caro patrono – redargui – acho que, como sou uma pessoa metódica, meu sonho deve respeitar hierarquicamente todos os que me antecedem com suas acadêmicas bundas em minha cadeira, antes que eu possa tomar posse dela. Estamos falando em quantas pessoas, depois de Augusto de Lima?
– Cinco! – respondeu França Júnior. – Vítor Viana, José Carlos de Macedo Soares, Abgar Renault, dom Lucas Moreira Neves e Alfredo Bosi.
– Todos mortos?
– Todos mortos.
– Então, finalmente poderei tomar posse? – quis saber.
– Não exatamente! – ele respondeu. – Há ainda um ocupante vivo, Paulo Niemeyer Filho, que sucedeu a Alfredo Bosi e está, agora, com 73 anos. Por ser médico, deve cuidar da própria saúde e viver ainda por muitos anos! Achas que podes esperar?
Não respondi. E ele concluiu:
– E já são quase seis horas da manhã! Quanto tempo ainda achas que teu sonho deve perdurar antes que acordes?