A bela canção do poeta Belchior, cujo título plagiei sem nenhum pudor, traz o refrão “Eu era alegre como um rio/Um bicho, um bando de pardais/Como um galo, quando havia/Quando havia galo, noites e quintais”. Pois é, eu também era feliz feito “um pinto no lixo” quando em minha vida havia rio, galos, galinhas e quintais em profusão. A propósito, na roça, de onde eu vim, não se dizia quintal, era terreiro. O terreiro de lá tem até hoje mil e uma utilidades. Serve pra secar o café ou o feijão recém-colhido, pra criar galinhas, pra fazer festas com arrasta-pé e pra criançada brincar.
Aqui na cidade, falou em terreiro, todo mundo dá aquele sorrisinho maroto, muitas vezes preconceituoso, como se insinuasse “frequentas um, né?”. Mas quem não tem terreiro, caça com quintal mesmo. Em Santos, onde moro atualmente, a partir do 15º andar, contemplo saudoso a vilinha planejada, em frente do prédio, com suas casinhas simples, mas todas com seus quintais. Admito uma certa inveja desse povo. Hoje em dia, ter uma casa com quintal é privilégio para poucos. Um jardinzinho aqui, uma árvore ali, uma piscina, mesmo que de plástico, acolá.
Como eu disse, no interior, onde não tinha terreiro, tinha quintais. Alguns pequenos, outros extensos, a perder de vista. Volto à Divinolândia da minha infância, da época em que ainda consigo guardar alguma coisa na memória. Éramos meio nómades, morávamos um período na cidade, outro na zona rural, nunca muito distantes do centro. No sítio, tinha eu meus cinco, seis anos, e já ajudava minha mãe nos afazeres domésticos, e brincava. Coisas corriqueiras como buscar água na bica ou tratar dos porcos. As galinhas eram uma diversão. Ah, também recolhia os pintinhos num balde, antes da chuva. Se ficassem no terreiro, a enxurrada levava.
Mais tarde, mudamos para uma casa, com um quintal grande, cuja fundo eram as margens do rio, o Rio do Peixe. Passava na periferia da cidade e ia em direção do Rio Pardo. Não era muito fundo naquele trecho, o que facilitava as brincadeiras. Lembro de uma amoreira grande, onde improvisámos um balanço. O lance era balançar e cair sentado na água. As amoras atraiam peixes, carás, cascudos, lambaris, que pegávamos com vara ou mesmo peneira. Não me lembro de quintal melhor do que esse.
Das margens do Rio do Peixe, diretamente, para a Vila Matilde, zona leste de São Paulo, um choque. Foi um custo me adaptar. Alugamos por pouco tempo uma casa nos fundos do terreno do seu Zequinha e dona Mariquinha, um casal de portugueses velhos, simpáticos, mas não muito afeito a crianças. Nem permitiam que brincássemos no quintal. Sorte que meu pai logo conseguiu comprar uma casa perto da estação de Artur Alvim, pequena, mas, aí sim, com um baita quintal.
Minha mãe sempre gostou de plantas. Ao mesmo tempo em que enchia o terreno com vasos de flores de todas as cores e procedências, plantava pés de maracujá, jambo, goiaba, laranja, mexerica, ameixas, louro, milho, até feijão. Além da horta, criávamos galinhas, patos, codornas. Claro que sobrava espaço para as brincadeiras. Tudo improvisado, como sempre. O carrinho e a escavadeira feitos de tocos de madeira e latas de óleo, o futebol de botão com tampinhas de refrigerante, pregos e caixas de fósforo. Éramos muito criativos então.
Futebol, jogávamos na rua mesmo. O asfalto ainda não tinha chegado por lá. A terra vermelha, quando chovia, virava um lamaçal. A molecada saia na chuva e voltava pra casa amarronzada. Na seca, não era diferente, pois tudo virava um pó só. Nos dias quentes, antes da chuva, o ar ficava infestado de formigas saúvas (tanajuras ou içás). Elas eram abundantes (literalmente), pois havia muitos formigueiros nos terrenos baldios da região.
De encontro ao objetivo das formigas de perpetuar a espécie, alguns meninos se muniam de panelas para caçá-las. Depois, separavam as bundas mais graúdas para comer com farinha, como é costume em algumas regiões do norte e nordeste do País. Quem adorava a caçada dos moleques era a minha mãe, mas por motivos outros. Cada içá recolhido significava menos saúvas no quintal para devorar suas plantas. Ela já era pela sustentabilidade numa época em que ninguém falava disso.
Manoel Dorneles
Contando História
O que o tempo altera e vira história
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Bravo, Dorneles…
Duro é morar no 15º andar e voejar sobre as lembranças de seus quintais! Só morei em apartamento durante três dos meus 67 anos de vida! Quintais, cachorros, sombras de árvores, passarinhos passarinhando… não consigo viver sem isso!