Cansei de ouvir minha mãe, tolerância zero que só ela, responder “é espicula, aquela que roda e pula” a toda indagação minha. Ainda mais quando ela tinha a absoluta certeza de que a resposta não era de minha conta. E quase nunca era. Só muito mais tarde, descobri que o “espicula” dela vem do verbo especular, ou seja, pesquisar, analisar, investigar. Mas havia variações. À pergunta “o que é isso?”, respondia de bate-pronto “chouriço pra comer no dia do seu serviço”.
Com todo esse chouriço e “espicula” não fui uma criança alienada do mundo ou adquiri algum trauma a me perseguir até os dias de hoje. Corri atrás, não era de estudar muito, mas busquei meu vocabulário, mais ou menos vasto, com muita leitura. Quanto à minha mãe, sempre relevei o destempero e o despreparo de uma mulher de muito saber, nascida em 1912, cujas conversas e expressões carregavam os falares típicos das fronteiras entre São Paulo e Minas Gerais, onde ela passou boa parte de sua longa vida.
No mundo adulto, continuei a conviver com pessoas que, por um motivo ou outro, usam expressões e palavras totalmente fora do contexto para substituir as de que não se lembram no momento. “São palavras-ônibus”, como explicam os linguistas. Nem precisamos falar do famoso “trem” dos mineiros, que cabe em qualquer conversa e lugar, e virou parte do folclore nacional. Negócio e troço também seguem na mesma linha. “Tinha um negócio lá no bufê, que eu não consegui identificar”, diz alguém. “Pega esse troço aí pra mim!”, ordena outro, ao mesmo tempo em que dá uma esticada de queixo para completar a frase.
Certa época, me divertia com um empresário, meu chefe, cuja palavra-ônibus era “pinguelo”. A secretária não tinha nenhuma dúvida sobre o que ele pedia, quando ouvia “traz esse pinguelo aí pra mim”. Outras vezes, a questão era “será que esse pinguelo vai servir?”. Da caneta ao apontador de lápis, tudo para ele era pinguelo. O que talvez ele não soubesse (ou não saiba) é que pinguelo é um sinônimo do clitóris ou a peça que faz disparar armas de fogo portáteis. O que vem a ser quase a mesma coisa, se é que me entendem. Já no feminino, pinguela, pelo menos no interior de onde vim, é um tronco que, ao ser colocado sobre um riacho, vira uma ponte improvisada.
De todos esses termos e expressões, que precisamos sempre ter à mão, nenhum supera a palavra coisa e seu derivado, o verbo coisar, cada vez mais onipresente. Coisa engloba todo corpo existente, animado ou inanimado, e até mesmo alguma manifestação incorpórea do tipo “não sei o que é, vi alguma coisa passando ou se mexendo“. Vixe, que medo! A propósito, coisa, coisar e seus derivados foram temas do último Enem, tirados de uma crônica da escritora Tati Bernardes sobre a obra de Caetano Veloso. Até ele entrou no debate.
Tati discorre no seu texto sobre o uso que o compositor baiano faz dessas palavras em “coisa linda”, “mexe qualquer coisa dentro doida, qualquer coisa dentro doida mexe”, ou então, “alguma coisa acontece no meu coração, só quando cruzo a Ipiranga com a avenida São João”, e por aí a fora. Ela também escreve sobre “coisar”, “um verbo de quem está com pressa, e pior, tem lapsos de memória. “Coisa aí pra mim” ou “acho que o casal estava coisando”, quem nunca ouviu frases assim?
Pois bem, o recurso e a literalidade usados por Tati ao inserir coisa e “coisar” no texto suscitaram uma pergunta capciosa, que confundiu até ela própria. A alternativa certa, para os organizadores do concurso, é “intertextualidade, marcada pela citação de versos de canções”. Caso fosse responder, a escritora diz que optaria pela alternativa “reiteração, marcada pela repetição de uma determinada palavra (no caso, coisa) e seus cognatos”. Caetano, ao contrário, optou pela “intertextualidade…”
Mas a coisa endoidou de vez, quando alguns professores consultados consideraram as duas respostas corretas. A sugestão deles é de que o Inep aprove as duas ou invalide a questão. Coisa de doido, não é? Também tenho minha sugestão aos linguistas e filólogos. Nestes tempos em que a tecnologia empreguiça cada vez mais o ser humano, notadamente os mais jovens, por que não valorizar mais o verbo coisar, ainda tratado de forma jocosa. Só como parâmetro, não se esqueçam dos anglófonos, que usam o verbo to get para tudo o que eles tem que coisar…
Manoel Dorneles
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O que o tempo altera e vira história
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