Dizem que o ser humano passa um terço de sua vida dormindo, mas eu duvido. Quem consegue se desligar de seus afazeres, de suas preocupações, de seus problemas e dos problemas dos outros que se refletem nos seus próprios durante extensas oito horas por dia? As condições, internas e externas, para que conciliemos um sono bom estão cada vez menos propícias. E nem digo que não temos predicados morais para usufruir do chamado sono dos justos porque até os justos sofrem de insônia.
Não quero chamar ninguém de mentiroso, mas, para mim, falta com a verdade quem diz que consegue desligar-se completamente durante o terço da vida que lhe cabe e acordar apenas ao completar seu direito de restauração. Como definiu Eça de Queirós, “o sono é mais o descanso do espírito do que o repouso da matéria”. Mas, seja qual for, espírito ou matéria, quem consegue restaurá-lo durante as oito horas diárias que parecem ser cláusula pétrea?
Se dormir regularmente fosse uma coisa corriqueira, não haveria tantas clínicas especializadas no sono, tantos blogs e tanta preocupação médica em geral com a qualidade do descanso ‘obrigatório’ da humanidade. Quer fazer uma experiência? Digite ‘dormir bem’ no Google e você receberá instantaneamente cerca de 62 milhões de respostas; digite ‘dormir mal’ e o número de resultados sobe a 251 milhões.
“As trevas e o silêncio são sagrados no sono, que é o silêncio da alma”, disse Bernardo Guimarães. Sim, são sagrados. Mas o preclaro leitor já procurou ver o que, além da escuridão e do silêncio, os ‘especialistas’ consideram essencial (e, na minha opinião, inatingível) para dormir bem? Acompanhe:
– Evite luzes acesas e use cortinas ou blackouts para impedir a entrada de luz externa.
Até aí tudo bem: apagar as luzes economiza na conta, e a cortina blackout não é cara, mas ajudaria se você morasse num local remoto.
– Tente deitar e acordar sempre no mesmo horário, mesmo nos fins de semana.
Sim, a vida é uma repartição pública, onde termina o expediente e os funcionários ‘não pingam os is ou cortam os tês’, como naquela piadinha antiga.
– Evite cochilos longos; cochilos de mais de 30 minutos podem prejudicar o sono noturno.
Claro, no caso de você ter cumprido as duas sugestões anteriores e ter conseguido uma bela noite de sono; o cochilo, para quem não sabe, é a tentativa do corpo humano de recuperar o que a noite mal dormida lhe surrupiou.
– Evite líquidos antes de dormir; beber líquidos, como chás, sucos e água, antes de dormir pode fazer com que você acorde durante a noite para urinar.
E esqueça que a sede é soberana; vá dormir com sede, se conseguir. No meu caso, bebo antes de dormir e bebo outra vez, caso levante na madrugada para um xixizinho.
– Evite cafeína à noite; a cafeína leva várias horas para ser processada e pode dificultar o sono.
Aí tudo bem, concordo.
– Evite bebidas alcoólicas à noite; o relaxamento muscular provocado pelo álcool pode causar distúrbios respiratórios do sono, como roncos e apneias.
O álcool pode, também – e aí falo por experiência própria – mascarar suas horas de sono e de recuperação: você literalmente desmaia, e é provável que acorde pior, mais cansado, do que quando desabou na cama.
– Pratique atividades relaxantes: meditar, fazer yoga, ouvir música lenta ou aromaterapia podem ajudar a relaxar o corpo e a mente.
Ou seja: para ter suas oito horas de sono, reserve uma hora antes para tornar seu ambiente propício.
– Durma em um ambiente confortável; o quarto deve estar escuro, com uma temperatura entre 18°C e 21°C, e tenha um bom travesseiro.
Só conheço uma forma de manter a temperatura controlada num ambiente: o ar-condicionado. Agora, pergunte a qualquer especialista ou quase especialista o quanto é aconselhável dormir com o ar-condicionado ligado.
– Não faça outras atividades em sua cama, como trabalhar, comer ou assistir filmes; costume a sua cabeça para que o local seja para descanso.
De novo: reserve uma hora antes de dormir para as atividades necessárias de seu dia a dia; nada como oito horas de sono e uma de pré-sono.
– Evite o uso de telas uma hora antes de dormir; opte por atividades que reduzem os estímulos visuais, como ler um livro.
Desde que você não leia o livro num Kindle…
Como se vê, não é fácil dormir um terço da vida. Mesmo porque algumas exigências para atingir esse objetivo são suficientes para nos tirar algumas horas de sono. A única solução, a meu ver, é voltar como um gato na próxima encarnação: aí, você vai desfrutar tranquilamente não de oito, mas de dezessete horas de sono por dia. E vai concordar com Mário de Andrade: “Que coisa misteriosa o sono. Só aproxima a gente da morte para nos estabelecer melhor dentro da vida.”