Adepto de um bom “ovo nosso de cada dia”, principalmente no café da manhã, passei maus bocados quando o preço do produto quase chegou à estratosfera. Não achava ovo em lugar nenhum, e quando encontrava, custava o “ovo da cara”, digo, “olho da cara”. Em conversa com um compadre meu, proprietário de uma chácara nos arredores de São Paulo, achei a solução para o problema.
Comprei dele meia dúzia de galinhas, dessas vermelhonas, poedeiras, cujos ovos têm gemas tão douradas que até ofuscam a vista, me garantiu. Nada de ração, só milho e “pasto”. Era até bonito de ver as bichinhas soltas no gramado do quintal, num cacarejo interminável, como se estivessem a resenhar o capítulo da novela de ontem.
É muito bucolismo para uma pessoa só. Elas lá livres, leves e soltas e eu, sentado na escada da varanda, embevecido. Passava horas e horas, só de olho no movimento. Vez ou outra, uma delas some. Como quem não quer nada, eu a acompanho, de soslaio, para vê-la entrar no ninho. Pronto, cinco minutos depois, lá vem ela toda escandalosa, a anunciar que trouxe mais um ovo à luz.
Confesso a vocês que cada vez mais fui me afeiçoando às penosas. Aposentado, sabem como é, sem ter muito o que fazer, identifiquei cada uma delas, aprendi seus hábitos e rotinas e até as batizei. Zelinda, Juventina, Marilda, Penélope, Raimunda e Raquel passaram a fazer parte do meu dia a dia.
À tardezinha, meu trabalho era só passar no porão, onde estavam os ninhos, e recolher meia dúzia de ovos. Opa, eu disse meia dúzia? Não era. Demorei um pouco para descobrir que só cinco botavam. Uma delas falhava na missão. Logo percebi que o “forfé” vinha justamente de Raquel, a minha favorita.
Desculpem, esqueci de contar que Raquel ganhou minha preferência por ser a galinha mais “simpática”, esbelta, colorida, vistosa, enfim. Esperta, ao se sentir a preferida, ela se achega, come milho na minha mão, se empoleira no meu ombro e bica levemente minha cabeça, como se estivesse a “catar piolhos”. Me segue por onde eu vou. Mas ovo que é bom, nada.
À essa altura, minha produção de ovos já começa a dar frutos. Imaginem vocês que cinco galinhas a botar todos os dias representam 35 ovos por semana. Muito além de minhas necessidades. Logo, começo a repassar para os vizinhos, neste caso, a um preço bem módico. “É para pagar o milho”, brinco. Outro plus é o esterco deixado por elas. Aduba minha pequena horta, devidamente cercada com tela, e ainda sobra para a vizinhança.
Admito que fiquei meio desapontado com a mancada da Raquel. Ao tentar saber o porquê, ligo pro meu compadre. Ele conta que na casa dele, ela punha ovos todos os dias. Quem sabe um galo, me indago. Não, problema duplo. Primeiro, ele vai colocar todas as galinhas no choco, reduzir a produção de ovos e aumentar a de galináceos. Não tenho mais espaço. Depois tem o canto das madrugadas, o que significa reclamação da vizinhança.
Demoro um pouco a contar à minha mulher. Ela é bem drástica: “Manda pra panela”. Quase cai da cadeira. Ciúmes puro, penso comigo. Ela percebeu meu chamego com Raquel e quer se vingar. Mulher é um bicho complicado. Quando encasqueta com alguma coisa, sai debaixo. Materialista, me diz que uma galinha sem produzir só dá prejuízo. Não bota ovos e ainda consome muito milho, essas coisas.
Me arvoro em advogado. Comento que não é assim que se resolve, que podemos passar sem os ovos dela, que ela pode morrer de velha no terreiro, por que não? Fracasso, ela derruba todos os meus argumentos. Me enche tanto a cabeça, que cedo à panela de pressão. Uma galinha da idade de Raquel leva umas duas horas no fogo.
A conclusão é que vamos mesmo sacrificar a pobre da Raquel. Mas quem vai fazer o trabalho sujo? Fria, minha mulher me intima: “Se você não tem coragem, eu tenho.” Ela mandou até amolar a bela faca de churrasco, que eu trouxe de Carlos Barbosa, na Serra Gaúcha, após uma entrevista com o Seo Clovis Tramontina. Deu um certo medo, quando ela apareceu na sala com a faca na mão e sentenciou: “Teremos galinhada no próximo domingo.”
Domingo de manhã, enquanto procuro uma desculpa para sair de casa, e não ver o triste fim de Raquel, me aparece um amigo de infância, que eu não via há tempos. Ele a sua filhinha Lili, de cinco anos. Criança de apartamento, ela só conhecia galinha da caixinha da Maggi, dos desenhos da tevê e, talvez, da animação “A fuga das galinhas”.
Quando vê aquele bando de galinhas ciscando no quintal, a menina fica doida. Corre que nem uma desesperada atrás delas e, claro, só consegue pegar uma. Adivinha quem? Dada como ela só, Raquel não corre, se deixa pegar. Eufórica, Lili a aperta tanto que quase a mata antes da hora. Sufocada.
Ao ver a cena, me vem a ideia salvadora. Aviso minha mulher que não vamos mais sacrificar Raquel. Converso com meu amigo, que não vai ficar para o almoço, e sugiro que Lili leve a galinha com ela. Seria uma espécie bem diferente de pet. Ele concorda e a menina fica em êxtase. Agora, Raquel troca o meu quintal, e as amigas, por uma gaiola na varanda de um apartamento, mas tudo bem. Melhor do que ir pra panela.
Neste domingo, sem galinha, eu e minha mulher, apelamos para o bom e velho frango assado da padaria. Ao mesmo tempo em que a solução me deixou mais confortável, admito que fiquei triste com a perda de Raquel. Na segunda-feira, juntei as cinco galinhas restantes, botei numa gaiola e as levei de volta ao meu compadre. Bem que ele tentou me pagar, mas eu não quis. A produção delas já fora suficiente.
Conclui que não valia mais a pena manter galinhas em casa para usufruir dos ovos. Além disso, a crise do ovo ficou para trás, e o alto-falante da velha Kombi parada em frente de casa, volta a anunciar:
– São 30 ovos por dez reais!
Manoel Dorneles

Fiquei esperando para saber por que a Raquel não estava botando… Algum trauma, alguma paixão?Virou uma galinha trans?
Nem deu tempo de leva-la ao veterinário para drscobrir. Ainda bem que escapou panela