Chutando macumba por aí

Cresci na periferia, e o que mais tinha na área, na minha época, eram arruamentos irregulares, terrenos vazios e muitas encruzilhadas, de vários tipos. Não sei hoje, mas, naquele tempo, as encruzilhadas eram um convite aos – que me perdoem o termo preconceituoso, mas era como falávamos então – macumbeiros.

Cumbucas com farofa, charutos, velas pretas e vermelhas, algumas com galinhas mortas, outras com garrafas de cachaça ou cidra vagabunda, outras ainda com tigelas de pipoca. Umas mais ricas, outras mais modestas… Acho que já existia na minha infância uma espécie de estratificação social entre os seguidores da religião.

A nós, crianças, aquilo assustava. Tinha a ver com as trevas, e as trevas tinham a ver com o mal. Os mortos obscuros que frequentavam as encruzilhadas não podiam trazer o bem, já que exigiam sacrifícios, só apareciam à meia-noite e certamente quem os invocava não estava pensando em oferecer felicidade aos vizinhos, aos maridos traidores ou aos colegas invejosos.

É claro que os trabalhos tinham destinos específicos, mas para nós eles reuniam coisa ruim o suficiente para sobrar para todo mundo. Por isso, havia uma regra básica: se pisar ou chutar a macumba, tinha de ser com o pé esquerdo; se fosse pegar alguma coisa do conjunto, tinha de ser com a mão esquerda. Tinha um tio que se gabava de beber toda a cachaça que achava nas encruzilhadas, mas tomando o cuidado de usar o lado esquerdo da boca.

Não sei por que essa associação da esquerda com a proteção em relação à macumba – ou, talvez, por extensão, da ligação da esquerda com o mal, e, por isso, sua capacidade de funcionar como salvo-conduto para nos envolvermos com aquilo. Quem sabe venha daí a demonização da esquerda entre os radicais (ou os ignorantes) de extrema direita que cada vez mais abundam neste país tropical e quiçá no resto do mundo.

No fundo, a gente não queria mesmo era se envolver com o que havia nas encruzilhadas, mesmo com mãos ou pés esquerdos. A solução era deixar quieto porque, mais dia, menos dia, a chuva ou alguém mais corajoso – ou poderoso – levava a oferenda e devolvia o espaço a novos trabalhos.

Claro que havia os mais corajosos, que chutavam as macumbas – com o pé esquerdo, claro – e restava para a gente, mais do que admiração pela coragem alheia, a expectativa de que algo de ruim pudesse acontecer a eles. Mas, vejam só, chutar oferendas nas encruzilhadas era o máximo de demonstração de intolerância religiosa que podia acontecer na aurora da minha vida.

Mas as coisas mudaram. No ano passado, por exemplo, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania registrou no país 3.853 casos de violação da liberdade religiosa, um número simplesmente mais de oitenta por cento superior ao registrado no ano anterior (2.128). E violação, claro, subentende violência.

Em 2023, dos 176 mil processos por racismo recebidos pelos tribunais brasileiros, 33% referiam-se à intolerância religiosa. Em 2024, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos recepcionou 1.940 denúncias de violação de liberdade religiosa e, adivinhem, 91% delas referiam-se a religiões de matriz africana. E aí é que ouso levantar a questão: a intolerância é apenas religiosa, ou tem a ver com a origem negra dessas matrizes? Não seria o caso de afirmar que o que acontece, explicitamente, é racismo religioso?

Bons tempos em que chutar macumba era o máximo de violência que nos permitíamos!

Marco Antonio Zanfra

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