As voltas que a vida dá 2

O leitor pode estar se perguntando como pode um gritante caso de incoerência profissional ser estampado nas páginas vizinhas de uma carteira profissional! Como pode um jornalista com larga experiência, como eu, ser editor numa página e, na subsequente, virar ajudante de cozinha? Algum castigo, alguma aposta?

A receita é simples, e vou repassá-la aqui: algum conhecimento básico de rotinas culinárias, quantidades invejáveis de álcool, mais a necessidade de pagar aluguel e comer alguma coisa de vez em quando. Quando a inadimplência aperta, o diploma e o registro profissional são os fatores que menos influenciam! Morar na rua seria o ápice dessa minha aventura burlesca, mas eu não queria chegar a tanto.

Durei pouco mais de um mês no ‘Santa’, jornal de Blumenau. Fui demitido porque, num sábado, no fechamento da edição de fim de semana, fui confraternizar com um repórter no bar, enquanto não chegavam matérias para fechar uma coluna. Como tinha antecedentes – um porteiro dedo-duro havia me denunciado por ter saído da redação durante o expediente para tomar um ‘rabo-de-galo’ no bar ao lado – foi ‘dispensa de incorporação’ sem direito a contestação.

Antes de conseguir o belo registro em carteira de meu desvio de função, fui cozinheiro numa lanchonete no centro de Florianópolis, a ‘Papa Gula’. Trabalhava o dia inteiro e, como não queria ficar sem o efeito do álcool na cabeça, descobri uma garrafa de vodca escondida num armário e acrescentava um pouco da bebida a cada sobra de suco de laranja que saía do espremedor elétrico. Outro absurdo meu na ‘Papa Gula’ foi fazer hora extra num sábado para preparar discos de minipizza, trabalhar quatro horas lubrificando a alma com uma mistura de Coca-Cola e Cachaça de São Francisco e terminar o expediente com uma produção de discos de vários formatos, exceto circulares.

Saí da lanchonete porque fui convidado por um colunista de amenidades de Blumenau a editar um jornal que ele pretendia lançar. Mas que não saiu do papel. E, portanto, tive de ir atrás de outro emprego – esse da carteira.

O restaurante chamava-se ‘Dona Benta’ e ficava perto da Universidade Federal de Santa Catarina. Vendia apenas comida para viagem. Não havia bebida escondida em canto nenhum da cozinha, mas, aos sábados, eles faziam uma batidinha de maracujá para oferecer aos clientes e eu me indiquei para tomar conta do barrilzinho, principalmente na hora do encerramento dos serviços. Sobrava bastante bebida lá dentro, acho que o único alcoólatra a frequentar o ‘Dona Benta’ era eu. A vantagem do restaurante é que você almoçava lá e podia levar restos de comida para jantar em casa.

Saí porque quis, quinze dias depois de entrar. Fiquei indignado porque a chefe da cozinha ficava de cobrança em cima de mim, só porque eu tinha me enganado e, em vez de ketchup, tinha colocado extrato de tomate no estrogonofe. Ora, errar é humano. Principalmente numa terra em que bebês receberam soro antiofídico em lugar de vacina contra a hepatite.

Não vou me alongar. Só queria contar sobre mais essa minha vergonha por causa da bebida. Isso ajuda a expurgar as más lembranças. Teria ainda mais dois anos de necessidade de expurgos, mas vou poupar meus leitores da terapia. 

Marco Antonio Zanfra

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *