Às sogras, com carinho!

Há quem tenha comichões e erupções cutâneas só de ouvir a palavra sogra, o que não é meu caso. Na falta de uma, tenho duas. A única coisa em comum entre elas é que ambas, com um intervalo de 30 anos, trouxeram à luz uma Silvana. Casei com as duas, uma de cada vez, é claro. Em outra ocasião, vou falar de Flor, a sogra atual, ainda cheia de vida, com quem nunca tive nenhuma pendência, e nem pretendo ter.

Vou tratar aqui de Nazira Abdalla, minha primeira sogra, toda plena no vigor de seus 98 anos. Para celebrar o aniversário dela, dia 31 de agosto último, dirigi quase mil quilômetros entre Santos, onde moro, e Itaporanga, cidadezinha paulista, na divisa com o Paraná. A festa, numa bela chácara, na entrada da cidade, foi organizada pelas três filhas ainda vivas. A quarta, minha primeira esposa, se foi há 13 anos, e o filho, o caçula, há uns quatro anos.

Além das filhas, genros e nora, estavam presentes netos, bisnetos, sobrinhos e uma infinidade de amigos. Nazira nasceu e viveu a maior parte de sua vida em Itaporanga, por isso é muito conhecida e estimada na cidade. É filha do libanês Antônio Abdalla, que desembarcou no porto de Santos com o passaporte turco, como era comum no início do século passado.

Antônio deixou no Líbano, mulher e filhos. Como a maioria de seus conterrâneos, dedicou-se ao comércio de mercadorias de porta em porta, o tradicional mascate. Em uma de suas viagens, chegou a Itaporanga, onde se estabeleceu e se casou mais duas vezes. Do primeiro casamento, nasceram Ídio e Augusta; do segundo, Galiana e a caçula Nazira.   

O mais curioso é que Armódio, um de seus filhos do Líbano,  cismou de vir para o Brasil atrás do pai. Chegou a Santos e, sem endereço e sem falar uma única palavra em português, saiu à sua procura. Após muitas idas e vindas, o encontrou em Itaporanga, onde também fixou moradia e constituiu família.

Essa e outras histórias da família ainda estão muito frescas na cabeça de Nazira, perfeitamente lúcida, às portas do centenário. Durante a revolução de 1930, ela tinha sete anos. Conta que seu pai recebeu para um café oficiais gaúchos, cujas tropas estavam acampadas na região. O objetivo deles era chegar a São Paulo para combater os constitucionalistas, mas com a deposição de Washington Luís e a posse de Getúlio, o conflito cessou. A poucos quilômetros dali, fica a cidade de Itararé, famosa pela “batalha que não houve”.

Nazira cresceu numa época em que pouca coisa era permitida às mulheres. Conseguiu concluir o ginásio, mas não foi além disso. Gostava de leitura e poesias. Poesias que aprendeu ainda na infância, e que declama até hoje, de cor e salteado, como fez durante sua festa de aniversário. O resto do tempo passava em casa, às voltas com os serviços domésticos, à espera de seu príncipe encantado.

Muito bonita então, ainda hoje conserva os traços, sofria marcação cerrada do pai. Até para ir aos bailes, comuns no clube da cidade, tinha que ser acompanhada pelos tios ou o irmão mais velho. E lhe impunha um horário bem restrito. A muito custo, permitiu que ela namorasse Oswaldo Lara, filho de um proprietário de terras da região. Casaram-se e dessa união vieram os cinco filhos.

A casa da família, localizada no centro da cidadezinha, era um ponto de festas e eventos. Ali, com a participação ativa da dona da casa, se reuniam quase todos os finais de semana os filhos, sobrinhos, tios e vizinhos para peças de teatro, leitura de poesias, cantorias. 

Mas os plantadores de feijão, numa época ainda sem tanta tecnologia, dependiam dos humores do clima para uma boa colheita. E ele nem sempre cooperava. O dinheiro curto fez com que Nazira, após um curso de técnicas de enfermagem, viesse para São Paulo atrás de um trabalho. Veio com os filhos, já formados, enquanto o marido ficou por lá na labuta da roça.

Na capital, a vida tomou uma nova direção e ela arrumou um emprego na Caixa Econômica Estadual. Depois de muitos anos na função de caixa, se aposentou como subgerente e voltou para a sua Itaporanga. Os filhos, agora casados e morando em São Paulo, só apareciam uma ou duas vezes por mês. Era quando a velha casa voltava a ganhar um pouco da antiga animação.

A casa sempre cheia deixa Nazira feliz. Ela tem um humor discreto, quase britânico. Econômica nos sorrisos e nos carinhos, é pródiga nos afetos, que se manifestam no olhar, sempre acolhedor. Lembro de quando a vi pela primeira vez, no portão da casa da Vila Mariana, em São Paulo. Ao buscar minha então namorada, fomos apresentados. Enquanto conversávamos, notei que ela me olhava fixamente.

Recém-saído da faculdade de jornalismo, dava os primeiros passos na profissão, na revisão da Folha. Eu tinha uma vasta cabeleira ainda escura, e a barba preta e cerrada cobria quase todo o meu rosto. Mais tarde, curioso, perguntei à minha futura esposa o que a mãe dela achara de mim, se feio, bonito, agradável, essas coisas. E a resposta:
– Disse que mal deu para ver os seus olhos.

Nazira contraria a velha máxima de que “vaso ruim não quebra”. Vaso bom, além de não quebrar, mostra que aguenta o tranco. Suportou com força e coragem os testes que a vida lhe preparou. O primeiro deles foi a perda de uma neta, aos nove anos, filha do caçula, também Oswaldo, num acidente automobilístico. Anos depois, era o marido, que também se foi. Em 2012, nova derrota, desta vez para um mieloma que levou Silvana, minha primeira mulher. Mais recentemente, com o advento da Covid, foi-se embora Oswaldo Filho.

Na festa de seu 98º aniversário, ao mesmo tempo em que se sente feliz e envaidecida, pelo carinho e pelas homenagens, ela cobra as presenças dos que se foram. Eu, crente numa outra dimensão após esta vida, fiquei a imaginar se eles não atenderam aos pedidos dela. Quem sabe não deram uma passadinha ao menos para um pedacinho de bolo…

Parabéns, e rumo aos 100, dona Nazira!   

Manoel Dorneles

2 comentários

    • Morávamos na Imaculada Conceição, no mesmo predio do Zé Luiz. Eu trabalhava na Agência e ela na Telesp. Depois fomos pra Vila Mariana

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