Este texto atende o desafio de escrever sem Ponto, apenas usando Vírgulas
Não é fácil, na minha idade, encontrar pelas ruas quem curta caminhadas como eu, porque caminhar, andar a pé num ritmo um pouco mais forte, parece ser coisa daquela geração que se situa entre os muito jovens e os de meia-idade, e eles a gente vê aos montes pelas ruas, vestindo roupas que os distinguem dos reles mortais, e muitos deles correndo, e não andando, mas, como eu ia dizendo, não é fácil encontrar pelas ruas pessoas da minha faixa etária caminhando, porque as pessoas na minha faixa etária estão tranquilamente sentadas em casa, isso caso ainda não tenham morrido, e então tem gente que passa por mim e solta ‘e aí, sempre caminhando…’, e eu respondo ‘sempre’, o que é verdade, porque caminho desde criança, não o faço por uma resolução de ano novo, tipo ‘este ano vou andar alguns quilômetros a pé, para ver se perco um pouco de peso’, o que, no meu caso, seria um disparate, porque, se eu perder um pouco de peso, acabo desaparecendo, e ninguém mais vai dizer ‘e aí, sempre caminhando’, porque ninguém conversa com pessoas que desapareceram, mas, de novo como eu ia dizendo, ando desde criança, ia a pé uma ou duas vezes por semana ao pico do Jaraguá, que ficava a cinco quilômetros de casa, quando eu morava em Pirituba, bairro onde nasci, e essa minha tendência a andar a pé foi crescendo e tomou forma meio terapêutica quando eu bebia, e a caminhada era uma forma de adiar um pouco o horário de começar a beber de novo, mas larguei a bebida e não larguei o hábito de andar, continuo andando todos os dias, e nessas caminhadas, veja só, acabei conhecendo alguém próximo à minha idade, que também vive para lá e para cá, exercitando as perninhas finas, deve ter mais ou menos a mesma idade que eu, não sei se mais novo ou mais velho, e nem quero saber, porque, depois que descobri que o ‘Véio da Havan’ é mais novo que eu, parei de avaliar a idade dos outros pela cara, mas vivo me encontrando com esse outro idoso, cujo nome não sei, pelos caminhos por onde ando, às vezes no mesmo sentido, às vezes em sentido contrário, nos cumprimentamos, ele com uma voz meio grasnante, mas jovial como eu, magro como eu, mais alto um pouco, de óculos também, sempre de boné no alto da cabeça, os pés virados cada um para um lado, quarenta e cinco graus para a direita e para a esquerda, e talvez por isso não caminhe tão rápido quanto eu, e talvez por isso aparente mais idade, mas o melhor da história é que descobri outro ponto comum entre nós dois, e não foi durante uma caminhada, mas durante uma parada de ambos no posto de saúde, eu procurando a vacina da gripe, ele procurando encaminhar uma consulta externa, e a moça do atendimento perguntou se ele não tinha alguém para buscar a guia de consulta para ele, coitado, tão velhinho, e ele respondeu, ‘até tenho, mas eu não quero depender de ninguém, eu mesmo venho buscar’, e eu quase bati palmas, porque, além de ter a mesma disposição que eu para caminhar, ele tem a mesma disposição que eu para a independência, e talvez, nessa caminhada, nos encontremos no rumo de nossos próprios velórios, mas sempre sem depender de ninguém para nos carregar, e veja só, nessa brincadeira de escrever usando somente vírgulas, usei nada menos do que noventa e seis delas!