As doze mortes do reverendo Scott

Tinha dezesseis anos, estudava em Osasco e vi pela primeira vez no cine Estoril o filme ‘O destino do Poseidon’. Somando-se a outras sessões de cinema e a exibições na tevê, cheguei a ver o filme doze vezes. E em cada uma delas a cena que mais me marcou foi a da morte do reverendo Scott.

Para quem não viu o filme, ou não se lembra, o SS Poseidon era um navio que virou de cabeça para baixo bem na festa de réveillon e a missão dos pouco sobreviventes era atingir o casco da embarcação para encontrar uma saída. O reverendo era daqueles religiosos que questionam a vontade e a onisciência divina e sacrificou a própria vida ao pendurar-se no abismo para fechar uma válvula que impedia a progressão da rota de salvamento.

Constato agora que a morte do reverendo Scott, uma por uma, teve mais efeito em mim do que a morte real do ator que o representou, Gene Hackman. Seria esta sua décima terceira morte, descontando-se as outras tantas que carregou nas costas durante os sessenta anos de sua profícua carreira. Mas esta não teve a mesma carga emocional.

É justificável o que senti no cinema, não apenas pela sensibilidade florescente da adolescência: é que foi uma cena dramática estudada para provocar a empatia dos espectadores, diante do ato heroico de pendurar-se sobre as chamas, cumprir a missão de fechar a válvula e despencar no vácuo, na impossibilidade de encontrar novamente uma plataforma onde apoiar-se. É claro que também a performance e o carisma do ator para encarnar um religioso com os pés no chão – nenhuma referência à sua cena final – tenham influenciado na geração de sentimentos da plateia.

Diferentemente de sua morte real, representando papel nenhum, sem roteiro que a glamourizasse, sem a herança da salvação aos personagens que com ele dividiam a cena, sem possíveis indicações ao Oscar. Era apenas um velho corpo carcomido após noventa e cinco anos de vida bem vivida, dependente de um marca-passo para lembrar ao coração cansado de que ele tinha de continuar batendo, e em circunstâncias tão nebulosas que um roteirista não precisaria de muita imaginação para transpô-las às telas.

A morte real não foi nada cinematográfica. Por isso, prefiro lembrar-me de Gene Hackman morrendo como o reverendo Scott, todas as doze vezes, e salvando a vida de uma dezena de parceiros de cena.

Afinal, o que é um ator senão os seus personagens?

Marco Antonio Zanfra

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