Aceito a morte não apenas por ser inevitável, como também construtiva: se não morrêssemos, não apreciaríamos a vida. (Jacques Cousteau)
Meu primeiro contato com a morte foi aos nove anos, quando perdi meu bisavô. Mas meu primeiro sentimento de morte só veio alguns anos depois, quando lia o segundo volume de ‘Solo de Clarineta’, e o livro terminou abruptamente, porque o autor Érico Veríssimo morreu.
Foi esse o sentimento de morte: a história não terminaria, porque quem a estava escrevendo terminara antes. O vazio que ficou foi muito mais doloroso para mim do que a morte física em si. O que ficou do escritor, além de toda uma obra antecedente, foi o vazio por um texto inacabado.
O vazio. No caso do meu bisavô, nada ficou dele que me dissesse respeito. Uma cama velha e fedorenta num quartinho velho e fedorento, uma bengala com que ele quase me acertou uma vez, um banquinho de madeira na frente do empório de meus avós, onde ele passava o dia sentado… As coisas continuariam do mesmo jeito depois que ele se foi.
Já Veríssimo foi embora e deixou algo incompleto para mim! Não só uma obra, mas coisas simples que ficam. Um chaveiro, uma caneta, um par de óculos… As pessoas partem e seus objetos ficam como que esperando um desfecho, uma continuação, uma resposta. Que nunca vêm.
No belo filme ‘As pontes de Madison’, o que me marcou não foi o belo e inusual amor entre o fotógrafo Robert Kincaid (Clint Eastwood) e Francesca (Meryl Streep), mas a caixa com os pertences dele que ela recebeu quando ele morreu. Assim como o vazio do texto após a morte de Veríssimo, uma pulseira, a máquina fotográfica e outros objetos que faziam parte do dia a dia de Kincaid chegaram à sua amante esperando uma resposta. Que nunca viria.
Eram apenas objetos. Mas objetos que tinham vida e utilidade nas mãos de quem os usava. Perderam o sentido vital porque quem os manipulava desapareceu. Podem até ser reaproveitados, mas sua alma original abandonou seu corpo inanimado. Ficaram como órfãos, em luto perpétuo. E sua reutilização nunca terá o mesmo sentido.
Meu pai era um faz tudo caprichoso, e todas as suas ferramentas tinham uma etiqueta plástica com seu nome. Quando ele se foi, herdei algumas delas. Mas só usei, até hoje, a caixa com as chaves cachimbo – e isso porque foi um presente meu. As outras eu acho que perderam sua alma quando ele partiu, e estão guardadas esperando uma continuação, uma resposta, um desfecho. Que eu acho que nunca virão.
Porque a morte não tem resposta, desfecho ou continuação…