Ao chefe Adílson

A história pode ter algumas variáveis, mas a essência é a mesma, e creio que todo jornalista a conhece: conta de um foquinha que foi cobrir a estreia de um circo na cidade, mas houve um grande incêndio na lona, morreu muita gente, e o repórter voltou para a redação no dia seguinte e disse que a pauta tinha furado, porque um incêndio tinha cancelado a inauguração do espetáculo circense.

Acho algo meio inimaginável que mesmo o mais cru dos jornalistas protagonize uma história com esse enredo, mas a narrativa já faz parte do folclore da profissão, e eu a repasso como a recebi, dezenas de anos atrás.

Pois bem. A nossa história – a real – se passa no final de 1979, na posse da nova diretoria do Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte Rodoviário Urbano de São Paulo, a primeira eleição depois de vários anos de uma gestão pelega. O Sindmotoristas tinha funcionado sob intervenção durante as décadas de 1960 e 70 e emergia de seu marasmo na esteira da renovação sindical nascida no ABC paulista, notadamente em São Bernardo do Campo, com Lula.

 Era a primeira vez, depois de anos opacos, que a oposição podia dar as cartas no sindicato. O direito de escolher seus próprios representantes havia sido precedido por uma greve de dois dias, aprovada por aclamação numa assembleia histórica na igreja

de São João, no Brás. Toda essa mobilização mereceu a atenção da imprensa. Pela primeira votação livre depois de anos de intervenção, a Folha de S. Paulo acompanhava com carinho todo o processo eleitoral, que culminou com a eleição de Ivan Gutierrez.

 No dia da posse, fui incumbido pelo chefe Adílson Laranjeira – a quem fui subordinado durante sete dos nove anos em que trabalhei na Folha – a acompanhar a solenidade na sede do Sindmotoristas, na rua Pirapitingui, bairro da Liberdade. O que aconteceu, porém, é que não houve a posse: a chapa derrotada nas eleições entrou com mandado de segurança e adiou o que seria a grande festa da oposição sindical (adiou apenas, porque ela acabaria acontecendo).

 E eu, jovenzinho de 23 anos, metido a engraçadinho, resolvi lembrar da historinha que contei no início deste texto: liguei para o Adílson e brinquei que a pauta tinha furado porque a Justiça suspendera a posse da diretoria…

 Quem conhece o Adílson Marques Laranjeira sabe que as brincadeiras nem sempre – ou quase nunca – eram bem-vindas. Quem estava perto de mim no orelhão do sindicato conseguiu ouvir seus gritos, me chamando de foca para baixo, achando que eu estava falando sério, e berrando instruções para acompanhar a nova situação. A mim, restou balbuciar: “Adílson, estou brincando, é claro que estou cobrindo a suspensão da posse…”.

 Ele respondeu um brusco “certo, me mantenha informado” e bateu o telefone. Depois dessa, nunca mais tomei a iniciativa de brincar com o chefe. Mas sempre ria de suas piadas e entrava na brincadeira quando ele a protagonizava. E então, como eu disse agora há pouco, sobrevivi ainda sete anos tendo-o como chefe.

 (Este texto foi publicado originalmente na edição 1.311 do jornal Jornalistas&Cia, de maio de 2021, e é uma tentativa de homenagear o chefe Adílson, que morreu na segunda-feira, 25 de agosto.)  


Marco Antonio Zanfra

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