Ela estava sentada na face norte da praça XV, numa mureta baixa, de frente para a catedral. Tinha os olhos verdes e o cabelo bem curto, no estilo que a gente costumava chamar antigamente de ‘joãozinho’. Com um pouco de visão condescendente, a gente notava que ela tinha os traços bonitos, suaves, mas a pele castigada pela sujeira afastava a ideia de beleza. As roupas encardidas e duas sacolas até mais encardidas ainda serviam como uma espécie de credencial para identificá-la como integrante do grupo de moradores de rua que estavam se preparando para apelar à caridade humana e conseguir a comida – ou a bebida – do dia.

Eram seis ou sete pessoas, contei rapidamente, sem fixar o olhar em nenhuma delas. Não me pediram nada, não falei com ninguém, mas o que me atraiu a atenção – e até provocou um leve sorriso fugidio – foi um dos membros do grupo chamar de Alexa a moça de cabelo joãozinho. Não sei se era o nome real dela, ou apenas uma brincadeira entre eles. Fosse uma brincadeira, mostraria que mesmo os sem-teto tinham certa intimidade com os apetrechos da vida moderna.

Florianópolis é conhecida como ‘Ilha da Magia’ – mas é por causa das bruxas descritas nos estudos do folclorista Franklin Cascaes, e não pela capacidade de transformar uma assistente virtual em moradora de rua. O epíteto serve também para mostrar a capacidade de atrair toda e qualquer espécie de novo morador, dos mais abastados aos que vêm esperançosos de construir uma vida melhorzinha, como se para isso bastasse um passe de mágica.

Por ser tida até alguns anos atrás como a capital brasileira com o melhor IDH, além de ostentar a beleza natural exuberante, o fluxo migratório ganhou embalo. A origem migratória é diversa. Para ter uma ideia, a moça que faz faxina mensalmente aqui em casa é do Acre. Mas não só a classe trabalhadora veio buscar refúgio: onde tem gente abastada, tem gente querendo aproveitar-se dos que têm ‘vida boa’. Quando comecei a trabalhar em Florianópolis, em 1998, no jornal ‘O Estado’, demos como manchete da página de polícia o caso de um rapaz detido com sete cigarrinhos de maconha; agora, no começo de janeiro, uma única batida policial recolheu 147 quilos da droga. O que mudou?

Em 1995, a população da cidade mal chegava aos 277 mil habitantes; hoje, trinta anos depois, passa de 576 mil, crescimento de 108% – ou ‘mais que dobrou’, para usar uma grandeza mais fácil de visualizar. Na comparação entre 2010 e 2022, foi a terceira capital em crescimento populacional, com 36,3%, perdendo apenas para Palmas (46,5%) e Boa Vista (43,6%), segundo dados do IBGE. São Paulo não passou de 8,4%; o Rio, 4,8%.

Levantamento com dados do CadÚnico em julho de 2023 apontava que a Grande Florianópolis abrigava (?) 2.749 moradores em situação de rua, 27,5% do total de todo o estado. A qualidade de vida atrai pessoas como a Alexa, na esperança de conseguir ganhos mais substanciais em sua garimpagem de esmolas. Não sei se é o caso de minha personagem, mas, para muitos, sair das ruas não é opção: aceitar ficar num abrigo, tendo de respeitar regras draconianas, não compensa perder a liberdade da vida ao ar livre. Fome não vão passar, sempre há quem se disponha a ajudar; no inverno, os abrigos municipais garantem o calor. Passada a noite, volta-se para a liberdade das ruas.

Tenho uma opinião, que pode ser contestada, pois é apenas baseada em observação. Não vi nenhuma pesquisa a respeito. É apenas um dado empírico: acho que há fases, temporadas, como as safras, para moradores em situação de rua. Sempre há caras novas, enquanto as velhas desaparecem. Não vi mais a Alexa, por exemplo, mas o número dos que circulam em torno da catedral e praça XV aumentou. Em certas épocas, o número de sem-teto diminui drasticamente.

Para onde vão? Será que são como os saltimbancos e se apresentam por várias cidades, quando o espetáculo deixa de merecer o apoio da plateia?

Marco Antonio Zanfra

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